26 de agosto de 2010

À cabeça

Carregam quase tudo à cabeça. Às vezes apenas uma catana, outras a trouxa inteira. Numa ginástica invejável exibem talento para carregar, horas a fio, os seus pertences, como se não fosse nada. Às vezes a carga até perde protagonismo, comparando com os filhos que levam ao colo ou pela mão. Começam desde novos, contribuindo com o que o pescoço infantil permitir, mas sentindo-se orgulhosos e colaborativos nos afazeres familiares. Deixo algumas imagens:


Fotografia: Patrícia Tomás


Fotografia: Patrícia Tomás
Fotografia: Patrícia Tomás
E deixo a descrição a alguém que carrega à cabeça o dom da escrita e tem, na cabeça, a mestria da imaginação: Só então percebo a elegância de que são capazes. O passo de gazela anula o peso que transportam, as ancas flutuam como bailarinas evoluindo num palco sem fim. Elas estão em eterno espectáculo, exactamente porque ninguém nunca olha para elas.”, Mia Couto, em Jesusalém

16 de agosto de 2010

Corte arriscado

Decidi cortar o cabelo, ou melhor, aparar…o que é muito diferente e pode complicar significativamente as coisas. Dirigi-me a um cabeleireiro unisexo na cidade de Pemba. Boa tarde para aqui, boa tarde para ali e, notei, algum ar de espanto no ar: talvez por ser novo, pensei. Nunca aqui vim, é um lugar pequeno, é normal. Fui encaminhado para a sala masculina e sentei-me à espera. Quando chegou a minha vez, o barbeiro só fazia gestos, nem uma palavra. Mas nestas situações, não precisamos de instruções…é quase sempre da mesma forma: sentamo-nos na cadeira, de frente para o espelho, aguardamos que nos tragam o resguardo para a roupa e dizemos o que pretendemos. Eu disse aparar. Ele ouviu rapar e encaminhou-se para a máquina. Eu repeti a-p-a-r-a-r. Os olhos dele esbugalharam-se, disse: “só temos máquina” e quase que lhe entrei no pensamento, tal era o tamanho do seu espantado olhar: “Como é que se aparará uma trunfa destas?”. Pensei em levantar-me e ir embora, mas respondi: “não é possível, você não tem uma tesoura?”. Ele respondeu: “o meu colega é que tem”. Repararam? Como ele me despachou para o colega? Mas fez bem. Pela reacção dele o mais certo era sair dali com máquina zero…

O colega estava assustado igualmente, mas não deu o braço a torcer. Tive a clara sensação de que a experiência com cabelos de brancos é escassa. Temi pelo meu cabelo, mas havia sempre duas saídas possíveis: uma a correr pela porta fora, a outra a andar dali com cabelo à escovinha. O 2º barbeiro fez uma autêntica visita ao meu coro cabeludo. Olhou de um lado, olhou de outro…e suspirou. Começou a por as mãos na “massa” e ia-me arrancando o escalpe. “Ouça”, disse-lhe eu, “se calhar é melhor molhar o cabelo”. Aproveitou a dica, mais para ganhar tempo e coragem do que para molhar propriamente. Temi o pior. Começou a cortar e senti as suas mãos a tremerem enquanto tentava puxar-me o cabelo para atacar com a tesoura. Cortou, cortou e, como tinha uma cadeira do meu lado direito a dificultar-lhe a passagem, entusiasmou-se a cortar…do lado esquerdo. Tive que lhe dizer: “já chega desse lado, o cabelo tem que ficar igual de ambos os lados!”. Pois, tem razão, respondeu… Já não temia. Secretamente tinha um plano de fuga: “máquina 1”. Mas nem foi preciso. Está um pouco torto, com pontas grandes e outras curtas, mas para o sofrimento que foi, da parte dele, está um trabalho razoável.


7 de agosto de 2010

Corais

E se, a 500 metros da vossa casa, tivessem uma barreira de corais? Beliscavam-se para ter a certeza de que era verdade? Pois eu belisquei-me e continuaram a ser verdadeiros...

No passado fim-de-semana fui com uns amigos explorar as maravilhas sub aquáticas que tenho na “minha praia”. Máscara e tubo emprestados, porque, verdade seja dita, nunca fui muito de mergulhos do género. Pequena caminhada, aproveitando a maré baixa e aí fomos, rabo espetado e olhos atentos.

Houve quem tivesse visto peixe leão, lagosta, lula, peixe papagaio,etc...eu “só” vi peixes e corais de várias cores, estrelas do mar enormes e uma medusa (tratando rapidamente de fugir dela). Talvez tenha sido azar de principiante, mas o suficiente para sair da água com um sorriso rasgado e a decisão de comprar tubo e máscara em breve.

Deixo-vos algumas imagens (fotografias a cargo de Stella e João):







1 de agosto de 2010

Circuito policial...

Numa indeterminada cidade de África regresso a casa à noite, conduzindo um carro novo em folha, sem documentos. Apenas com licença de circulação que, nos primeiros tempos é suficiente, mas pode dar facilmente azo a implicações. Opto por uma rua pacata para evitar loucuras de condutores que entornam o copo no volante, ou depositam a masculinidade em todos os cavalos que o carro tem. Ao fundo vejo uma lanterna no meio da estrada a mandar parar, um carro da polícia e logo ganho motivos para me arrepender pela escolha do itinerário!

- Boa noite, está frio, hã? – diz o polícia.

- Boa noite senhor agente. É verdade, mas é muito importante estarem a fazer este controlo na estrada – pensando contra mim, mas sendo sincero.

- Pois, mas estamos sem café, sabe?

Percebi de imediato a bela metáfora. E devo confessar que foi a abordagem mais rápida que algum polícia me fez com o intuito de pedir um ”valor”. Deixo a conversa fluir para ter a certeza de que ouvi bem. Não tenho a iniciativa de lhe mostrar os documentos. Aguardo que ele mos peça.

- Então e vai para casa?

- Vou sim senhor agente…

- Vai ter com a sua namorada?

- Mas isto é um posto de controlo social? Não tenho namorada, senhor agente.

- Como não?

- É assim…

- Mas tens que ter, é muito importante. Alguém para nos esperar à noite em casa, para falarmos no segredo dos lençóis.

- Pois! Mas quando é que ele me vai pedir os documentos? Mas sabe, parece que o meu destino agora não anda virado para aí…

- AAhhh…pois, fica só com as miudinhas, não é?...também é bom, mas precisas duma fixa, além das meninas que arranjas fora de casa. Uma fixa dá orgulho à nossa família, sabes?

- Boa, agora temos uma discussão de gestão do mercado feminino. Será que me vai impingir a sua filha, moça casadoira, em vez de me pedir os documentos?

- Como é então em relação ao nosso café? – voltando assim à bem conseguida metáfora

Não gosto de o fazer, mas dei-lhe uma nota, para beber o seu tão desejado café e não ter que expor a minha intimidade ali, naquela rua pacata.

No dia seguinte fiz uma inversão de marcha e, logo que retomo a nova direcção, sou mandado parar, naquilo a que chamaria de ratoeira. Parece que estavam à espera.

- Boa noite.

- Boa noite, senhor agente.

- Você anda bem, hã?

- Ando sim. Está a ver que até tenho cinto? Eu e o passageiro. – respondo eu, ainda mergulhado na ingenuidade.

- Então e aquele sinal, não viu?

Viro a cabeça e, no meio de árvores e cartazes de publicidade vejo o tão indesejado: proibido fazer inversão de marcha. Ei-lo ali, bem visível, e ao alcance de todos. PORRA, penso, agora tem razão.

- Senhor agente, não tinha visto! – curto e conciso, pois nestas alturas é o que sei fazer.

- Pois é, estava lá o sinal. E sabe que a multa é de 1000 meticais? (por volta de 23 euros)

- Não sabia, mas parece-me que só me resta pagar, não é?

- Será? – responde o polícia com um sorriso matreiro

- Mas estes polícias agora são peritos em metáforas e charadas? Que se passa?- penso eu

- Podemos resolver doutra forma.

- Bem, este só é especialista em charadas, porque de metáfora não tem nada! Mas…espera…estes tipos nem polícias de trânsito são. Passe a multa então, senhor agente. Acho que é o mais justo. – para ver como se descalça um polícia de segurança pública a passar multas de trânsito.

- Mas quer ir à esquadra?

- Se tiver que ser vou, senhor agente. Cometi uma infracção, devo pagar por ela. – eu na minha batalha de cidadão cumpridor, com o secreto conhecimento de que não poderia ser multado naquela situação.

Ali estava uma interessante charada: eu tinha infringido a lei, mas AQUELE polícia não me podia multar. Ele começou a ficar nervoso e a dar voltas ao carro.

- Bom, então e se resolvêssemos já aqui? – diz o polícia descalçando assim, de forma óbvia, a pressão.

O que se seguiu foi um capítulo que vou omitir neste texto. Basicamente regateei a “atenção” a dar ao polícia e segui caminho. Mais uma vez digo: não gosto de o fazer, mas às vezes facilita tanto! A história completa fica para contar à lareira, num futuro…

Umas horas depois, estaciono o carro noutra parte da cidade e, ao sair para a rua, vejo um aparato demasiado agitado em meu redor. Saltam dois polícias duma pick-up, em jeito de rusga, um deles com uma metralhadora a tiracolo. Será para mim?, penso eu ainda alheio ao que se estava a passar.

- ENTRE NO CARRO, MOSTRE OS DOCUMENTOS DA VIATURA E CARTA DE CONDUÇÃO. – diz um deles muito claro e mas vigoroso.

- Olha, é mesmo para mim. Mas o que se passa? Terei uma placa no carro a dizer: “agentes de autoridade, não tenho documentos, por favor mandem-me parar, chateiem-me e levem algum”?

- Não vou entrar dentro do carro. – digo eu já farto daquela novela toda. Novela de ficção, claro. Cabe na cabeça de alguém pedir aquilo?

- Facilite a situação. ENTRE NO CARRO, MOSTRE OS DOCUMENTOS DA VIATURA E CARTA DE CONDUÇÃO. – insistindo eles naquela ideia.

- Que será que me vão fazer? Obrigar a andar uns metros até pisar um risco contínuo e multar-me? Ou vão já encher-me de balas? NÃO entro senhor agente. Estou fora do carro. Se quiser mostro-lhe o meu passaporte.

Nisto há um outro carro que faz inversão de marcha num local proibido e de repente todo aquele aparato ganha nova direcção. Todos os polícias, carro de patrulha e metralhadoras apontam agora a um novo alvo e vão-se embora, sem sequer ver o meu passaporte, QUE ESTÁ LEGAL, BOLAS!

Quando fui ter com uns amigos, logo de seguida, pedi que me ajudassem: estarei a delirar? Não, André, é assim mesmo, já devias estar habituado – respondem. Pois, bem sei, mas acho que foi uma overdose de insanidade em tão pouco tempo, não estava preparado…