9 de setembro de 2018

Jogo de cintura


No fim dum dia de trabalho, no norte de Moçambique, numa casa de estadia para as equipas, tentava preparar o meu jantar. A cozinha era desconhecida e isso implica sempre algum gasto de tempo a encontrar o lugar das coisas. Mais voltas, menos voltas, 3 ou 4 tentativas e os utensílios e ingredientes estavam encontrados. O maior problema apareceu na hora de ligar o fogão elétrico. Parecia ser incapaz de o fazer e o azeite que já tinha posto na frigideira arriscava-se a ficar frio. Precisava de ajuda!

Chamei o guarda da casa, pois em Moçambique há quase sempre um guarda, ajudante ou auxiliar, como preferirem. Veio um ancião de pé descalço calejado e cabelo quase todo branco. Simpatia quanto baste, mas sem passar muita confiança. Nenhum sorriso. Expliquei-lhe o problema e ele, com sabedoria madura, disse:

- Aqui, o problema… - e eu fiquei radiante, pois ele em tão pouco tempo já tinha percebido o que se passa com o fogão – é você não saber usar o fogão!

Murro no estômago, calafrios na espinha, olhos esbugalhados! Então eu, macho latino, homem independente, pai de filhos, não sei usar um simples fogão?, pensei eu enquanto abria e fechava as mãos num gesto nervoso. Mas, digerida a fúria, a verdade é que não estava a saber usar aquele fogão e, se dependesse de mim, ia para a cama de estômago vazio. Respirei fundo e respondi:

- É mesmo? Peço então para me explicar, meu pai… - no melhor sotaque Moçambicano que encontrei
Ele esticou os braços e abriu as mãos na direção do fogão com muita cerimónia, como quem estava prestes a desvendar o mais importante mistério a seguir ao big bang.

- Você tem esta luz aqui perto do botão… - começa ele.

- Sim – murmuro eu com muita atenção.

- Quando esta luz está acesa, o fogão está apagado, não aquece.

- Sim – continuo eu, igualmente atento, pois esta instrução era fulcral para o meu jantar.

- Roda o botão e a luz apaga – continua o ancião.

- Sim – acompanho os passos todos.

- Quando a luz apaga, o fogão aquece – termina o ancião, com um sorriso inédito e com a confiança de quem acaba de dar a palestra mais importante do dia.

E era a palestra mais importante do dia, pelo menos para mim. Uma explicação dum problema aparentemente simples foi na verdade o remover dum muro intransponível, que me impedia de fritar um simples ovo! Eu fiquei imóvel, surpreendido pela explicação. Apenas consegui dirigir os olhos ao ancião e num levantar de sobrancelha disse “OK”. Acho que consigo lidar com essa peculiaridade do fogão, pensei.

O ancião saiu na maior descrição e eu fiquei sem reação sequer para o cumprimentar. Eis uma boa lição, pensei, sozinho, com os ovos na mão e o azeite a aquecer. Se tivesse insistido na arrogância inicial, tinha passado fome. Afinal era verdade que eu não sabia usar aquele fogão. Comi o jantar e fui dormir de estômago consolado.

1 de setembro de 2018

Generosamente Pedro


O destino quis levar-te demasiado cedo com tanto ainda por dizer e fazer. Resta-me aceitar e saborear as tantas e tão boas memórias que tenho de ti.



Nesta despedida física, de tanto adjetivo que se tem usado para te caracterizar, há um que foi unânime: generoso. É nele que pego para te agradecer.

- A generosidade do teu sorriso inigualável. Sorrias com todo o rosto, contagiando  boas energia e outros sorrisos;

- A generosidade que te permitia sempre ter uma palavra construtiva sobre qualquer pessoa;

- A forma generosa com que vias a beleza dum desafio do caminho, onde muitos apenas reclamavam dum trilho sinuoso e cheios de pedras;

- Quando partilhávamos alegrias, tinhas a generosidade de substituir as palavras que não te saiam pela garganta trémula com um abraço. Um abraço grande, demorado, de veludo, que tanto dizia sem uma única palavra;

- A generosidade que te afligia se não conseguias soluções humanas e simples para problemas grandes no trabalho;

- A generosidade que te deixava feliz com a presença ou a felicidade dos que amavas;

- A generosidade com que agradecias cada dia da vida, por estares vivo, por estares de saúde e teres uma nova página por escrever;

- A generosidade do discurso assertivo, de palavras ponderadas, sem rodeios;

- A generosidade de teres sempre tempo para escutar, enrolando um caracol no cabelo ou cruzando os braços na tua característica barriga e dizendo: “hhmmm”, recebendo de forma neutra a mensagem;

O mundo perdeu um grande ser humano, perdeu um poço de generosidade.

Levarei comigo, na caminhada, a tua voz, a tua paz, o teu exemplo, o teu sorriso, a tua generosidade. Tenho a certeza que tornará o percurso muito melhor.

Obrigado por ter feito parte da tua vida e termos partilhado tanto ao longo do caminho.

Até um dia, onde nos encontraremos algures para partilhar uma garrafa de vinho…