16 de janeiro de 2019

A mãe da minha irmã



- A mãe da minha irmã v…

- A mãe da tua irmã? Essa não é a tua mãe?

- Não. Foi mulher do meu pai, antes de ele se juntar com a minha mãe.

- Ui. Que confusão. Na minha família sou eu, o meu irmão e os meus pais.

- Ah…comigo é diferente!

- Então tens uma meia-irmã, é isso?

- Eu até tenho três meios-irmãos. O João e o Paulo do lado da minha mãe e a Teresa do lado do meu pai.

- Pois. E tens irmãos ditos “completos”, da mesma mãe e mesmo pai?

- Sim, a minha irmã Rita, mas agora vive com o meu padrasto na Austrália.

- Como? Porque não com a tua mãe?

- Porque a minha mãe juntou-se com uma mulher e vivem…

- ….com uma mulher? São…?

- Sim, são um casal homossexual.

- E vives bem com isso?

- Sim, porque não? A minha irmã é que nem tanto…

- Porquê?

- Sei lá, faz-lhe confusão e nunca se deu bem com os enteados da companheira da minha mãe.

- Enteados da companheira da tua mãe…?

- Sim, infelizmente o pai deles faleceu num acidente.

- E a mãe?

- A mãe deles bazou. Ninguém sabe onde está!

- Bolas. Que situação…

- Ya. Vidas pá! A minha irmã agora também precisa de calma, porque vai ter bebé em breve.

- Ah, que bom, e onde anda o teu cunhado?

- Não tenho…eh eh… Ela decidiu ser mãe solteira. Recorreu a um banco de esperma e não quer nenhum pai para o bebé.

- Então e aquela rapariga que vimos noutro dia no café? Afinal não era tua irmã…?

- A Nádia? Não, porque achas isso?

- Quando me apresentaste chamaste-lhe “minha irmã”…

- Foi? Ah mas isso é uma forma de dizer. É minha brada, conhecemo-nos desde miúdos lá da rua onde brincávamos.

- Ok. Acho que estou meio confuso. A tua família não é muito clássica.

- Pois não, nada, ainda tenho outra irmã, como costumo dizer, de pais diferentes…

- Irmã de pais diferentes!?

- Ela veio ainda bebé viver connosco porque os pais dela não tinham condições e acabamos por crescer sob o mesmo tecto. Apesar de viver na Argentina, falamos com muita regularidade.

- Sim, a ligação deve ser forte…

- Xii, e como não. Ela está óptima. Retomou o contacto com a família biológica e vê lá, ganhou mais um avô.

- Desculpa?

- A avó paterna voltou a casar com 62 anos. Engraçado, não é?

- Engraçado. No mínimo, engraçado!

- Olha, e antes que me perca, e o teu pai?

- O meu pai está porreiro, menos malandro agora…

- Porquê malandro?

- Epa, o cota andava a fazer jogo duplo. Mantinha duas famílias e respectivas famílias ao mesmo tempo. Nem sei como fez aquilo!

- Uau…e deu bronca?

- Claro! Quando elas descobriram, mandaram-no passear e no espaço de uma semana ficou sozinho!

- Ups…

- Sim, mas juntou-se há uns anos com uma mulher bem porreira que tem um filho adoptado e parecem dar-se todos muito bem.

- Ok. Assim, ganhaste mais duas mães na tua vida.

- Por enquanto sim…ah ah…é o que a vida me tem dado…

- Essa tua família é muito dinâmica.

- Global, eu diria, global!

- Sim, com origens africanas e influências modernas fica uma família global, sem dúvida…

- Bem, mas como te estava a dizer, a mãe da minha irmã vai fazer um churrasco no sábado. Queres ir?

- Ya, bora…



2 de janeiro de 2019

Ciné Gurué

Volto a falar do Gurué. Dista (em linha reta) de 1.300 Km de Maputo e de 300 Km de Quelimane, a capital da sua província.


O Gurué tem cerca de 200 mil habitantes e a sua maior força económica é o chá e a agricultura, com um cenário (que partilhei no post anterior) idílico, com verde, cascatas, calor e chuva, como se poderá ver nos contos infantis de alguns livros.


E se chamei ao Gurué a pérola, deixe-me inserir a “cereja no topo da pérola” que é o Cine Gurué. O edifício é por si histórico, contrastando com tanta ruina na cidade. O edifício faz-me lembrar os cinemas dos anos 50 que ainda frequentei em Lisboa e que agora escasseiam. O edifício faz-me parar em plena praça central, contemplando-o, namorando-o, fotografando-o, trazendo memórias do Cinema Alvalade (e não da obscenidade que lá colocaram agora) quando saía da minha escola preparatória.

Para mim, avistar a peça arquitetónica no Gurué já me chegava. Seria suficiente para divagar no seu passado de como o Gurué se situava à frente do seu tempo e o cinema suportava a azáfama cultural da época.


Espanto meu quando vejo as portas abertas! “O edifício estará vivo?”, pergunto-me, boquiaberto…

Suspeito que a placa do lado direito lá esteja há umas décadas, mas “o interior deve ter sido invadido por um centro comercial reles”, penso resignado ao desbaste do tempo e aproximo-me.


Os cartazes no exterior, a máquina de pipocas preparada e a placa pregada no poste revestido a madeira fazem-me tremer as pernas. “Ainda passam filmes aqui?”, Questiono-me, mas sem querer mesmo acreditar. “Devem passar filmes numa sala pequena”, afirma o meu lado mais pessimista. Mas curioso com a placa, fico inquieto. Há duas sessões e uma delas em matiné. 

Sempre adorei a palavra matiné. Era para mim, enquanto criança, o respeito pela minha condição etária. Havia discotecas em matiné que, se bem me lembro, acabavam sempre com o slow, para cada um tentar a sua sorte. E havia cinema em matiné, onde as exigências juvenis eram satisfeitas com filmes adequados. E quando se saía do cinema/discoteca ainda havia luz do dia. 

Sensação que repito hoje em dia, por vezes, mas passada a madrugada e dando as boas vindas ao novo dia, com o raiar do sol…


Assim que entro vejo as inconfundíveis portas de madeira com a janela retangular na parte de cima e começo a entrar em delírio. Faço rapidamente conversa com o pessoal que está a jogar snooker no átrio e pergunto, incrédulo, “a sala de cinema funciona?”. “Claro”, respondem-me sem grande surpresa. “UAU!”, digo para dentro com espasmos de alegria.

Peço para fotografar e, de olhos esbugalhados apercebo-me que, ali, a história ainda vive. Cadeiras imaculadamente alinhadas com o assento retrátil nas mesmas dobradiças em que foram montadas.


Sala de plateia e balcão! Plateia e balcão senhoras e senhores…não se esqueçam, estamos no Gurué!

O braço da cadeira é de madeira, reto, desconfortável, partilhado com o vizinho do lado, tal e qual os conheci.



Afina-se a circulação de ar antes da sessão começar mesmo por baixo do cartaz do “Break of Dawn” (2002) com o nosso estimado Joaquim de Almeida. As ventoinhas são ligadas uma por uma, ao redor da sala, ao ritmo do escadote.


Sabendo que existe uma máquina projetora na ícone “sala das máquinas” apresso-me a pedir permissão para a ir fotografar…pedido que teve resposta afirmativa.


E mesmo que já não funcione, há-de sobreviver fisicamente a muitas gerações digitais que a substituem agora na projeção de filmes.

Esta magia toda é gerida pelo Jahanguir Hussen que, com a paixão necessária, mantém as duas sessões diárias ao fim de semana…e gere o espaço de discoteca no átrio do cinema. Uma mais-valia cultural.


Num impulso, dirijo-me à bilheteira e compro um bilhete para a matiné, revivendo momentos da infância, vivendo momentos do presente, deliciado. “Bilhete para o balcão”, digo com secreta satisfação. “Vinte meticais (30 cêntimos de euros)”, responde através da ínfima abertura para transacionar dinheiro e bilhetes.


ATENÇÃO senhoras e senhores, a entrada no balcão compensa o preço do bilhete, a curiosidade histórica, a nostalgia cultural, a viagem de estrada, o mistério da vida e a existência universal! Portas de madeira e cortinas cinematograficamente dispostas. A partir deste momento entrei em êxtase. Não fazia a mínima ideia sobre o filme que iria ver nem tão pouco me importava com isso!


O filme que vi, na minha opinião, foi fraco. Pistolas, porrada e frases feitas. Uma merda, diria, mas a audiência trouxe uma visão diferente da opinião meramente cultural. Audiência que aumentou timidamente ao longo da exibição e, claramente, ultrapassou os 80% de ocupação.

Este cinema é um espaço onde a plateia (e balcão) é livre de gritar quando o herói dá um bom murro, largar um suspiro de aflição se ele está em apuros ou aplaudir quando se safa duma situação complicada. Vive-se o filme na plateia (e balcão) com um entusiasmo duma realidade projetada na tela. Eu diria que essa emoção contribuiu com 70% da projeção. O resto é apenas mais um filme…


À saída misturo-me na multidão, composta por adultos, crianças e bebés de colo (mesmo que o filme não seja o mais indicado). Devo ser o único branco entre a multidão e, dado o volume de pessoas, dou comigo a pensar qual a linha do metro que vou apanhar quando sair. Tenho o burburinho típico de saída do cinema, as escadas ainda em lusco-fusco, uma musica neutra ao fundo e essa sensação, mais uma vez, vale o preço do bilhete, a curiosidade histórica, a nostalgia cultural, a viagem de estrada, o mistério da vida e a existência universal!



Depois de sair não apanho o metro, claro. Dirijo-me ao clássico café central do outro lado da rua, ainda na mesma praça, e bebo uma cerveja, orgulhoso pelo impulso de ter ido ao cinema no Gurué.

O filme em si é de esquecer, nem me lembro do título, mas o que é inesquecível é a experiência, naquele cenário, numa ida ao Gurué. Enquanto levo a garrafa à boca, olho para o edifício do Cine Gurué e tenho agora uma ligação íntima com interior daquele edifício, como um amor que invadiu o nosso coração e não iremos deixar, independentemente do tempo ou distância que passará…