29 de outubro de 2019

Coreias em Moçambique


Os sul coreanos viajam livremente pelo mundo, com excepção da Coreia do Norte. Um sul coreano que visite o vizinho do norte sem prévia autorização terá, no seu regresso, uma recepção garantida na prisão.

Os norte coreanos têm os seus movimentos controlados. Ao longo da História são aos milhares os que tentam fugir (outros milhares não o conseguem) e têm que viver clandestinos algures. Os que saem oficialmente fazem-no debaixo dum formalismo apertado e burocrático. São controlados a cada passo que dão no exterior e escutados em cada murmúrio.

Assim, é difícil os Coreanos cruzarem-se.


Moçambique recebe ambas as Coreias e foi aqui que a Yumi, com quase 30 anos, viu pela primeira vez um norte coreano ao vivo. Os sul coreanos são emigrantes universais. Os norte coreanos ingressam programas intergovernamentais. A globalização tem destas coisas e Moçambique foi, por momentos, palco dum indesejado encontro entre Coreias.

Estávamos a dar um passeio numa pacata manhã de Domingo, pela avenida Kim Il Sung (primeiro líder da Coreia do Norte), larga e generosa em árvores que atenuam o fulminante sol. Poucos carros e apenas dois grupos de pessoas, andando em direcções convergentes, curiosamente do mesmo lado do passeio.


Ao observar o outro grupo, a Yumi disse, por impulso e com uma certeza inquestionável: “o grupo que se aproxima é de norte coreanos”. Uma série de questões invadiram-me a cabeça: “Como teria ela tanta certeza se nunca tinha visto nenhum?”, “Como se identifica à distância um norte coreano?”, “Qual a probabilidade de ver um grupo de norte coreanos na rua (se ver um único já é tão difícil)?”.

É verdade que eu ainda estou a desenvolver técnicas para distinguir os Asiáticos pois, à partida, parecem-me todos iguais. No entanto já começo a ficar confortável para distinguir os Coreano dos Japoneses, ou dos Chinês. Mas topar à distância uma nacionalidade que ela nunca tinha visto, é uma análise de exigência elevada.

O grupo vinha em descontraída conversa e conseguíamos ouvir o aproximar do burburinho. De repente um deles terá dado sinal e o silêncio instalou-se. Limitaram-se a caminhar, demonstrando algum incómodo com a presença da Yumi que, suponho, terão identificado também como sul coreana.

Ao passarem por nós conseguimos ver a bandeira na lapela: eram norte coreanos. Estava lançada a oportunidade de um encontro histórico. Quem sabe se o encontro poderia despoletar a reconciliação de 2 países que vivem amuados há décadas. Por momentos sonhei com um acontecimento inédito, apadrinhado pelo primeiro lider norte coreano, abençoado por Moçambique, motivado pela energia sul coreana. Ajeitei a camisola, de forma a estar preparado para o acontecimento.

Mas depois do aproximar dos dois grupos, seguiu-se o mero cruzamento entre pessoas. Não se trocou nenhum olhar, nenhum sorriso, nenhum gesto, nenhum som. Da parte da Yumi houve frieza, da parte dos norte coreanos houve bloqueio de qualquer emoção. Claramente o encontro era dispensável por qualquer uma das partes. 

Nos grupos de norte coreanos no exterior há um bufo infiltrado (que nenhum dos outros membros conhece) e por isso o receio deve ter chegado ao nível da mente, não vá a tecnologia sacar as ideias ao cérebro.

 À medida que eles se afastavam de nós, voltamos a ouvir as suas vozes. O acontecimento trouxe um potencial enorme de um encontro histórico, mas o potencial levado à prática resultou em zero. Acabava de ocorrer um encontro diplomático com omissão de protocolo.

Mais tarde, ao pensarmos no que tinha acontecido, riamo-nos com a prenda irónica que a História nos ofereceu: um encontro entre Coreias, em Moçambique, na avenida Kim Il Sung. Com centenas de ruas e avenidas pelo mundo, qual a probabilidade deste acontecimento?