12 de dezembro de 2020

Almoço real

*acontecimentos pré-pandemia

 

No final da missão de trabalho avisam-nos que fomos convidados para um almoço tardio com a Rainha. “Com a Rainha?”, admiro-me eu, “Como se almoça com uma Rainha? Não tenho roupa apropriada…”.


Estávamos no mato, no coração da Zambézia, onde se sente que a vegetação renova o ar, o calor vem do chão e com qualquer chuva as plantas parecem saltar, tal é a velocidade com que crescem.


Dirigimo-nos aos aposentos da Rainha. Estava ansioso para a conhecer, pois não é todos os dias que se vê uma Rainha ao vivo.

Vemos na mesa alguns dos produtos locais, numa espécie de oferenda aos visitantes. E nós, que trazíamos?

Mostram-nos igualmente a apanha desse dia: folhas e flores de quiabo. Os meus olhos brilham, pensando que vou experimentar tal iguaria, mas logo anulam o meu entusiasmo dizendo que se trata do jantar da Rainha. “Demora a preparar”, informam-me…

A nossa mesa é delicadamente preparada, com uma toalha que parecia esperar por visitantes para sair da prateleira. O “palácio” da Rainha tem uma palhota muito acolhedora, com um telhado de colmo que nos resguarda do implacável sol. É servido xima, caril de frango e malagueta fresca ainda agarrada aos ramos colhidos, para consumir em função do gosto por piri-piri.



Talheres de prata? Não há…uf…tinha dúvidas se saberia usar talheres requintados e guardanapos bordados. Descartadas as mordomias, come-se com a mão direita, fazendo uma bolinha de xima, que depois se mergulha no molho. Absolutamente delicioso.


No final da refeição, a sobremesa. Cana-de-açúcar e a primeira produção de aguardente de cana-de-açúcar do ano: a primeirinha! Vem disfarçada numa garrafa de cerveja, sem rótulo, omitindo qualquer ingrediente extra e sem necessidade de anunciar o grau de álcool. Tem que se ir mastigando a aguardente e percebendo o nível de álcool com base na conversa que vai tendo com o corpo.



A primeirinha é servida pela própria Rainha, a líder da comunidade local, cuja realeza se evidencia na sua generosidade. Com um sorriso enorme agradece a iniciativa de cadastro de terras que estamos a fazer na sua aldeia, conhecendo e valorizando a importância do trabalho.

Bebo alguns copos. É doce, leve e perfumada. O meu corpo conversou bem com a primeirinha. No regresso ao alojamento sinto uma enorme sonolência, uma rendição do corpo à sabedoria da primeirinha. Fundo-me com a cama às 17h30 e só acordo 12 horas depois…reconstruído…


 

24 de setembro de 2020

Cuidado com os macacos

Num desses muitos paraísos que Moçambique nos oferece, passeava com o Leo rodeado de vegetação. Um cenário destes pode oferecer variada fauna e podemos ficar maravilhados com os gala-gala ou os pássaros ou as baleias à vista, etc…


Neste sítio havia um tipo de fauna mais atrevido, os macacos. Era óbvio que tinham alcançado um nível de confiança que os deixava aproximar dos humanos. Provavelmente por erro humano, pois algumas pessoas acham giro darem comida aos macacos e eles habituam-se. Estes aproximavam-se da mesa do pequeno-almoço com intenção séria de, a qualquer distração nossa, roubarem uma fruta ou pão ou o que conseguissem.

Alertei então a pequenada: “cuidado com os macacos”! O “cuidado com…”, é uma expressão que os pais têm sempre preparada e que costumam usar de forma abusiva. Mas o “cuidado com os macacos” fez-me parar e desatar a rir.



Eu, nascido e criado em Lisboa, só via macacos no jardim zoológico de Sete Rios, por trás das grades. A única actividade que via deles era quando comiam de forma mecânica os amendoins que lhes dávamos. Sem ser no ZOO, só me lembro de os ver na TV!

Aqui em Moçambique, o Leo desatou a chorar quando pretendia dar um passeio sozinho agarrado às suas bolachas e teve que voltar para trás por perceber a cobiça de um dos macacos pelas bolachas. Lavado em lágrimas disse: “papá…macaco quer bolacha Leo”. Como pai reconfortei-o, mas confesso que divertido pela situação peculiar.

Ensinei-o então a afastar os macacos. Sem atirar nada nem tentar bater, expliquei que podíamos dar uns berros, bater as palmas ou qualquer outra solução que recorresse ao barulho. Normalmente isso seria suficiente.

E foi.

Passado um bocado o Leo agarrou um pau que batia vigorosamente no chão e mantinha a macacada a um perímetro de segurança. Resultado: criança feliz, pai descansado e cada macaco no seu galho.



 

11 de setembro de 2020

Baleias à vista

É sabido que nalguns meses do ano as baleias visitam a costa de Moçambique. Nalguns locais a probabilidade de as ver aumenta devido ao ecossistema e  ao reduzido tráfego marítimo.

Se damos por nós num desses locais, nessa altura do ano, nasce uma esperança de ver qualquer coisa. Qualquer sinal de que as baleias estão no mar já valeria a pena a missão.

Mas quando vi, mesmo ao longe, a primeira espuma, invadiu-me uma excitação infantil.


Depois vi uma parte do corpo, que à distância pode ser qualquer coisa, mas bolas…é baleia!!


O espectáculo vai-se desenrolando ao próprio ritmo das baleias na natureza, lento. E eis que vejo o dorso de duas baleias a nadar a par, não muito longe da rebentação das ondas! Achei que tinha atingido o auge deste safari à distância.


Na esperança de ver mais dorsos e espumas, sentei-me em local próprio, munido de uma lente objectiva que me permitisse registar o que se passa lá longe no mar. 



E aí sim, o espectáculo começa e as baleias vão bailando à nossa frente, a tirarem partido da sua liberdade e do ambiente que ainda lhes permite voltar todos os anos, cumprindo um maravilhoso ciclo da natureza.





O auge, esse sim, foi atingido, quando a Bia quis fazer um desenho sobre o que mais gostou nesse dia…


 

30 de maio de 2020

Velório cocktail



A tua morte foi difícil de digerir. Porque foi repentina e prematura, embora no teu caso fosse sempre prematura. Fiquei com a sensação de que ainda havia muito para falarmos e partilharmos.

Inicialmente, o teu velório foi o cumprir de um mal necessário, mas como último adeus, eu estava lá de corpo e alma. A capela encheu-se de gente, com pessoas que vinham de vários lugares e várias épocas da tua vida que fizeram questão de se despedir.

Eu circulava dentro e fora da capela conforme a disposição me deixava. A dada altura, quando entrei na capela, fiquei estupefacto com o ambiente que se tinha gerado. Imensas pessoas e um ambiente de (quase) festa: gargalhadas, memórias, reencontros. Achei muito estranho, desenquadrado. Por momentos pensei ficar até ofendido, pois aquilo era um velório, não um cocktail de uma qualquer inauguração.

Depois olhei para o teu corpo estendido no caixão no meio da sala. Percebi que o tinhas deixado há muito tempo e que o espírito que ali se vivia era o espirito com guiaste a tua vida: boa disposição, pessoas, vivências. Aí dei por mim a pensar que faltavam ali alguns petiscos e bebidas, como gostavas de receber as pessoas. Eras mais uma vez o anfitrião e de lá, de onde nos estivesses a ver, estarias certamente a apreciar. Aquela era a homenagem certa para o homem certo. Que mais se poderia fazer para assinalar a data? As pessoas estavam de facto a celebrar a tua vida.

Sei que apesar de teres partido fisicamente, viverás em cada lembrança ou inspiração.

É assim que me tens acompanhado nestes quase 2 anos e irás continuar, pois estás tão presente em tantos momentos da minha vida que me é difícil recordar-te pontualmente. Às vezes apetece-me falar contigo, e falo, pois sei que sempre foste um bom ouvinte.

Kanimambo e estamos juntos…


2 de abril de 2020

13 anos

13 
ANOS

23 
PAÍSES

298 
TEXTOS


156 mil 
VISUALIZAÇÕES


!!MARAVILHA!!


19 de março de 2020

Poligamania

Grande parte dos homens Moçambicanos vangloria-se por ter 3 ou 4 mulheres. Têm a que chamam de “principal”, ou por outras palavras, a de casa. Depois têm namoradas fora do lar, às quais dedicam parte do seu tempo, tão pouco quanto o maior número de namoradas, acredito.

O nível de envolvimento entre o homem e as namoradas externas ao lar muda em função de diversas variáveis, levando um relacionamento de pura diversão, comprometimentos mais sérios (embora não formalizados) até, por vezes, ao nascimento de crianças (por vezes formalizados).

Não fique a pensar que é tudo diversão e que o homem comporta-se levianamente em busca de prazer, como cheguei a ouvir em Angola: “Fazer o quê? A pilinha dá para todas…”, imbuído de uma generosidade inconsequente.

Os relacionamentos secretos dão trabalho. Imagino o stress que é gerir agendas, percursos, perfumes, mensagens no telemóvel, amigos em comuns ou datas importantes. É assunto que me cansa só de pensar.

Há casos em que os relacionamentos são públicos, e todas as mulheres sabem da existência uma das outras. Aqui o factor de gestão de tempo fica suavizado, de facto.

Mas em ambos os casos, o factor custo é grande. Como gerir a despesa para as diferentes mulheres? Em vez de um presente, oferecem-se 3 ou 4? Tudo a multiplicar?

Ao pensar neste assunto calculei que a população de mulheres em Moçambique fosse 3 ou 4 vezes maior que a população de homens, ingenuamente considerando que não havia “conflito de interesses”.

Mas constatei que não. Há mais mulheres que homens, sim, mas quase na mesma proporção!

Então, partindo do princípio que “cada tacho tem a sua tampa”, ou seja, que todos nós temos direito a um par para partilhar o amor, há aqui uma intensa prática de poligamia, mas em ambos os lados da questão. É que a palavra poligamia, divide-se em outras duas:


poliginia, em que um homem tem várias mulheres, 


e a poliandria, em que uma mulher tem vários homens.



Assim, há vários tachos com diversas tampas, mas também há muitas tampas a servir vários tachos. Em linguagem informática seria o famoso “N para N”. Em linguagem social é a rebaldaria.

Fica evidente que, enquanto uns falam muito, as outras não dizem nada, mas todos o fazem.

Nos tempos que correm, acrescido a este frenesim de poligamia, há diversas variantes do amor que baralham a estatística clássica.


Seja qual for a opção, seria bom que prevalecesse o respeito e o amor….

13 de fevereiro de 2020

Restrição de água

A notícia chegou pelas redes sociais no Sábado de manhã, e depois confirmada num comunicado oficial.

A ponte que sustenta os tubos de abastecimento de água às cidades de Maputo, Matola e Boane (mais de 2 milhões de pessoas) cedeu e a canalização foi interrompida. A previsão era de 10 dias sem água, ou com muitas limitações de abastecimento. Faziam-se apelos à poupança de água. A foto que acompanhava o comunicado confirmava a terrível notícia.


Depois do pensamento “que chatice”, fui visitado por uma reflexão: “Estarei preparado para viver com restrições de água?”. Porque embora tenha uma preocupação geral e antiga de poupar água, só quando a palavra “restrição” se junta à sua distribuição é que me apercebo que posso tomar duches mais curtos, racionalizar o autoclismo, tornar a lavagem da loiça mais eficiente. Ainda não aplico a reutilização da água, mas é um plano que tenho cá para casa, como por exemplo a água do banho ainda servir para alimentar o autoclismo.

Viajei assim numa possível previsão pessimista de restrição mundial de água (já estivemos mais longe)! Um cenário que vai obrigar certamente a uma reeducação de uso de água para mudar os nossos hábitos.

Mas enquanto isso não acontece e a solução (ainda) estiver ao alcance, veremos as carrinhas de distribuição de água a invadir as ruas das cidades, como aconteceu em Maputo nessa mesma tarde de Sábado.


Assim, os tanques voltam a encher numa tentativa de contornar a tal de restrição. Não coloquei esta hipótese cá para casa, pois com a grande demanda à água a especulação deve ter sido imediata.

Ao consultar a previsão meteorológica para os próximos dias, sorri! Agradeci a São Pedro por ser tão generoso e no momento tão oportuno. Chuva abundante durante 4 dias significaria que haveria água para todos, bastava aproveitar. 


Cá em casa orientamo-nos para captar a água da chuva em baldes e alguidares, para atenuar a tal da restrição…afinal ela caía de forma gratuita do céu e precisamente no período crítico.

Não tirei nenhuma foto, mas fui presenteado com este vídeo, feito em Maputo, por uma senhora que desconheço, mas à qual quero saudar pela sua "tecnologia" feita com astúcia, proactividade e visão. Com uma engenharia simples, garantiu água para os serviços básicos certamente.




Que continue a chover, contrariando assim uma tendência (cada vez mais real) de falta dela nalguns locais. E que a saibamos aproveitar…
  
No final de contas, a situação não tem sido assim tão má (sim, no momento que vos escrevo ainda estamos com restrição de água). O abastecimento tem sido feito alternadamente nas diversas zonas da cidade, contando com água a cada 2 dias que, com o sistema de depósitos e bombas de que vos falei, nem se nota a falta de água nas torneiras.



Fica registado o acontecimento como uma premonição de cenários mais difíceis que possam vir. Fica feito o exercício de sobrevivência e o aviso sério de que poupar água é o caminho.

28 de janeiro de 2020

Mão esquerda

Ao pagar a cerveja, abro a carteira com a mão direita, tiro a nota com a mão esquerda e assim a entrego, num gesto rotineiro. Enquanto saboreio o primeiro gole, a empregada do balcão traz o troco na mão direita. À minha frente, faz questão de passar o dinheiro para a mão esquerda e dizer-me, com alguma ira: “desculpa a mão esquerda”.

Fiquei sem perceber o que aconteceu ali. Porque razão ela passou o troco para a mão esquerda, para depois me pedir desculpa precisamente pela mão esquerda? Imagine-se uma pessoa na rua que nos dá propositadamente um encontrão e depois de forma mecânica pede desculpa a seguir. Alguma coisa se passa. Ou a pessoa não bate bem da cabeça, ou há uma tentativa de passar alguma mensagem. Escolhi a 2ª opção.

É do senso comum não atirar o dinheiro a ninguém, não é sério dar dinheiro a menos a contar com alguma distração, mas qual a questão com a mão esquerda? Haverá “mão certa” e “mão errada”?

Naturalmente, inquieto curioso, fui investigar.

Nas escolas em Moçambique os canhotos sofrem, porque “não fica bem” escrever com a mão esquerda ou entregar objectos com a mão esquerda. Em actos mais formais entrega-se com a mão direita, colocando a esquerda a meio do braço direito, numa espécie de manguito, mas com o braço direito devidamente esticado. Este é um gesto de elevada educação.

Nas repartições públicas, o facto de entregar papéis com a mão esquerda é meio caminho andado para se encalhar o processo por algum tempo, mas imbuído num silêncio que nada nos revela sobre a inocente falta de respeito.

Perguntando a dezenas de Moçambicanos, o mais curioso é revelado, pois o desconhecimento é total: sabem do facto, respeitam-no, educam os seus filhos dessa forma, mas não sabem o porquê. Assim, há uma disciplina implícita, sem que o motivo esteja claro, que se for quebrada leva-nos para terrenos da má educação.

Posso apenas suspeitar que a origem deste fenómeno se pode encontrar na influência árabe e indiana que Moçambique tem. Nessas culturas a mão esquerda é de facto relegada para funções menores, não podendo sequer ser usada para comer ou cumprimentar alguém.

Talvez se trate de tradições que passam nos hábitos rotineiros, mas cujo conteúdo se perdeu no caminho…

Da mesma maneira que não encontro explicação lógica para “as senhoras primeiro”, como mandam as boas maneiras (inventadas por quem?). Pode ser visto como cavalheirismo, mas o cavalheirismo às vezes é parente do machismo e o machismo é um erro básico do comportamento humano.