19 de maio de 2019

Prisão Perpétua ou Reforma de Luxo


O meu amigo Carlos Alberto é um exímio contador de histórias, essa herança cultural tão rica que se poderá perder pelo fast reading das redes sociais. O contar de histórias vale pelo ritual, tendo o conteúdo moral ou não, servindo mais para partilhar do que para exibir.


O Carlos Alberto tem uma positividade admirável, fazendo crer que o pessimismo é para ele uma poeira que afasta com as mãos, para lhe deixar ver o que realmente anima. Ele não só gosta de África, como África lhe corre no sangue e isso nota-se na sua emoção, tantos anos depois de sair de cá…

Da juventude dos seus 83 anos, nos dias de inspiração conta-nos histórias com tal intensidade que chegamos a ver o cenário e a sentir empatia pelas personagens. Ouvi histórias dele que facilmente categorizava como ficção, mas não, embora difíceis de acreditar, são verdadeiras, ele esteve lá. Até podemos ter ouvido uma história diversas vezes, mas paramos tudo para a ouvir mais uma vez. Como num flime que já se viu dezenas de vezes, mas saboreamos a história aguardando com satisfação “aquela cena” ou “aquele diálogo”…

Ora, um contador de histórias deste gabarito não pode passar ao lado da Tertúlia Africana e foi-lhe lançado o desafio de partilhar uma. Ele aceitou, e a Tertúlia ganhou mais um brilho. Entusiasmou-se a escrever 20 páginas manuscritas (dum possível livro seu à espera de sair) e que depois de “bater à máquina” aqui partilho. Uma história que nos traz pedaços da História.

Agora o aprendiz faz a vénia ao mestre e transcrevo o texto [Silêncio, que se vai contar uma história]:

“Queridos Amigos – vivem felizes e com gosto? (diria o meu Pai sempre que encontrava alguém que já não via há muito tempo…).Pergunto eu agora, depois do nosso André Pinheiro, na sua “Tertúlia”, me ter desafiado a recordar alguma historieta dos meus tempos de vida em Moçambique. Tempos estes que transcorreram de Fev/Mar 1937 até Mar 2016, último período em que por aí andei convivendo com esse bom Povo Moçambicano, ainda a Sacha trabalhava no Hospital Privado do Maputo.

Rebobinando agora a minha memória e andando para trás ao recordar passagens de vida (a mordedura da “green mamba” em 1941), personagens ilustres (Samora Machel em 1975, na Beira), pessoas menos ilustres (David Peter, em 1950, no seu Acampamento do Mutchira), pessoas simples (o filho David Peter Selenge, em 1977, e o filho deste, Salomão, em 2016). Fixo-me em 1973, no fim-de-semana de Páscoa desse ano (Abril – época seca) e vem-me à memória, com muita Saudade, uma pequena aventura partilhada com o Manecas (primo direito da Isabel), o Bongo (o responsável da nossa “machamba” na Beira) e o Jeepão (um Dodge, a gasolina, do U.S.Army, que veio de El Alamein, no Egito, para a Beira, trazido por um migrante italiano e comprado, em 1960, por 36 contos pagos “a três”: a minha Mãe, a minha prima Maria Helena e eu próprio. Gastava 40 litros aos cem, e a gasolina custava na altura 4/5 escudos o litro. Era o B – 5862.

Nesse fim-de-semana de Páscoa, desafiei o Manecas e o Bongo para um passeio às margens do Zambeze e, assim, na Quinta-Feira, véspera de feriado, arrancámos pela estrada de Inhaminga, que seguia paralela à linha da TZR (Trans Zambezia Railway – a única empresa privada de caminhos de ferro que conheci) - Levando mantimentos, ovos cozidos, frango assado, água, cervejas na geleira, duas armas como era hábito (uma de bala e uma caçadeira para as perdizes e galinhas de mato) e duas tendas para dormir. O motor do Jeepão, neste passeio, já não era a gasolina mas sim a gasóleo que custava 2$50 o litro. Tive de substituir o motor “Dodge” por um motor “Perkins” de manutenção muito mais barata!

Tendo saído da Beira depois do almoço, fomos pernoitar, já noite dentro, à floresta de Inhamitanga, famosa pelos seus muitos elefantes. Atenção que, a partir do Dondo, todas as estradas eram, à época, de apenas dois trilhos, em terra batida, o que significa que, para cruzar com outra viatura, tínhamos de parar e sair da faixa de rodagem. O nosso Jeepão, naquelas estradas, não dava mais de 20/30 kms/hora, e foi já perto das 20 horas que escolhemos um local, na floresta, para acampar e dormir depois de acendermos uma pequena fogueira para afugentar aranhas, aranhiços, cobras, serpentes, bichos, bichezas e…maus pensamentos…

Quatro/cinco da manhã, o raiar da aurora a despertar-nos para um novo dia encetado com um frugal matabicho de café ou chá, leite condensado, uma fatia de pão já meio duro e uma ou duas laranjas que as havia, e muitas, por aquelas terras adentro.

Decorrida uma boa meia hora, saímos da floresta e entrámos na zona pantanosa da bacia do Zambeze, rumo a Caia, uma pequena povoação, sede de posto administrativo, nas margens do grande rio…

A certa altura, deparamos com um braço estreito do mesmo, conhecido por “Zangué”, não mais de 50/70 metros de largura de água com a jangada de madeira amarrada na margem oposta. “Marinheiro, marinheiro …”, gritámos e, passado um bocado, vemos dois ou três homens saírem duma palhota (onde certamente dormiam), subirem para a jangada e começarem a movê-la, muito lentamente, arrastando os milhares de pequenos nenúfares que se multiplicam por aqueles baixios e onde se esconde toda uma imensa e variada biodiversidade, da qual os crocodilos são uma das suas peças fundamentais…
Passados 15/20 minutos, a jangada está do nosso lado e, com a ajuda de duas tábuas já muito “manhosas”, o Jeepão entra, muito suavemente em primeira, inclinando-a para o lado de maior peso. Feitos os cumprimentos, pago o serviço (não há faturas nem recibos), dado o “saguate” (para mim sempre sagrado!), aí vamos nós, já com o Sol bem alto e a fazer calor do bom…

Saídos do pontão, procuramos uma sombra para uma pausa de “sandwiches” o que só nos aparece 30/40 minutos mais tarde, à beira da estrada. Aí estacionados e olhando em redor, deparo com um velhote, carapinha branca, com ar de hortelão, agarrado a uma enxada, e trabalhando a terra à volta duns canteiros bem cuidados que, percebi logo, eram de alfaces, cenouras, feijão, couves, tomate, milho e pouco mais…

Como sempre gostei de fazer cumprimentei-o e o nosso diálogo foi mais ou menos este:

- Massôco … Uá shona? (como está? novidades ?). A “machamba” (terra trabalhada) é de você?

     - Não senhor, “machamba” é de Sr. Administrador…

     - E você onde vive? (à volta, em redor, num raio de 1/2 kms não se divisava qualquer habitação ou povoado) …

     - Nosso está preso, vive na cadeia…

    - (fiquei banzado com esta resposta…e sem palavras… Vi que havia ali história para contar)

     - Como está preso? Você está sozinho aqui, até pode ir embora e levar enxada consigo…

     - Ihhh patrão…não pode…

     - Como não pode?…não tem guarda aqui, não tem ninguém para guardar você, pode ir embora para sua casa…

     - (comecei a espicaçá-lo para aprofundar a história) …

     - Ihhh patrão…nosso não pode fugir…nosso vem aqui todos dias de manhã tratar horta…

     - Mas quem dá semente para semear feijão, tomate, couves?
     - É Sr. Administrador…

     - Mas quando Administrador vai embora e vem outro … como é que faz? … já pode ir embora ?

     - Ihhh … não pode patrão …

     - Onde está família de você?

     - Família de nosso está na Matola…já não conhece…

     - Qual foi “milando” (conflito) que você arranjou para ficar preso?   
  
   - “Milando” de muito tempo…matou gente…tempo de companhia de moçambique…

     - Tempo de Companhia de Moçambique?…não pode ser…

Comecei a fazer contas, a Companhia de Moçambique, que era majestática, com poderes de soberania, tinha tribunais privativos, cunhava moeda própria (libras), tinha polícia própria e tinha um Governador, a viver na Beira, que representava o Conselho de Administração em Lisboa. O Salazar acabou com estes poderes majestáticos em 1943 mas a Companhia continuou, embora exclusivamente, como empresa comercial…

Raciocinando um pouco mais, constatei que o hortelão, “cocuana” (velhote), ao referir a Companhia de Moçambique, como contemporânea do seu “milando”, estava a querer dizer que tinha sido julgado e condenado antes de 1943. Como esta conversa ocorreu em 1973, a conclusão a tirar era a de que a sua “prisão” já se arrastava, no mínimo, há 30 anos, o que, à face do Código Penal de então nunca poderia acontecer pois a pena máxima era de 20 anos de cadeia que, em casos excepcionais de agravamento, poderia chegar aos 24/25 anos…

Como explicar então esta situação? Explico-a da seguinte forma:

Na altura, os processos judiciais não eram digitalizados nem sequer com depoimentos gravados. As suas folhas eram cozidas à mão, com uma guita muito forte que enfiava numa agulha de sapateiro e formavam volumes, de 80/100 páginas cada um, estas numeradas e rubricadas pelo escrivão do processo. Os processos, quando findos, iam para o Arquivo do Tribunal com uma etiqueta exterior, de cartolina, onde se escrevia “Réu preso a libertar em tal data…” e ninguém mais pensava neles a não ser o Juiz Inspetor que, de 3 em 3 anos ou de 5 em 5, aparecia a efectuar a respectiva inspecção. Pode perfeitamente ter acontecido que, numa mudança de instalações do Tribunal dum local para outro, a etiqueta do processo (quem sabe se apenas presa por um “clip”) possa ter caído e desaparecido…

Acresce que, naquela época, os Indígenas condenados a penas maiores, (o Indigenato só foi extinto em 1961 pelo Ministro Adriano Moreira) tinham de as ir cumprir numa área administrativa bem longe da área da sua residência. Este hortelão terá sido enviado para a Zambézia para cumprimento da pena do Tribunal de Lourenço Marques ou da Matola …

Transferido para o Posto Administrativo de Caia, este condenado terá arranjado a profissão de Hortelão da Cadeia ou do próprio Administrador e Família. Lembro-me do velhote me dizer que não tinha ali qualquer família pois esta ficara toda na área da Matola, a 1000 kms de distância do Zambeze. Apesar de, por duas ou três vezes, lhe ter dito que ele podia ir embora, sempre me respondia, plenamente convicto: “Ihhh patrão … não pode fugir”, o que evidencia bem como ele se sentia “psicologicamente preso” a uma sentença proferida 30/40 anos antes. Estou convencido que, só com a Independência de Moçambique, em 1975, o nosso “cocuana” terá recebido Carta de Alforria das autoridades moçambicanas, e quem sabe se não terá preferido continuar “preso” por mais uns anos já que a horta, no Zangué, era o seu único e melhor meio de subsistência…

Quando, em 1974, compartilhei esta história com alguns dos meus antigos Professores da Faculdade de Direito de Lisboa que, naquele ano, visitaram Moçambique (Profs. Isabel Maria Magalhães Colaço e Dias Marques) lembro-me deles comentarem, de mãos na cabeça, “Como é possível isto acontecer no nosso Ordenamento Jurídico?!”, “Um indivíduo ficar preso quase a vida inteira!?!?” …

É que a pena até pode ter sido de apenas 20/25 anos (o que era normal para crimes de homicídio), tendo sido arrastada para além dos 30 anos por esquecimento do Tribunal que o condenou, e o Administrador de Circunscrição (assim se chamava) do Posto de Caia nunca iria soltar este condenado sem um Ofício formal, a ordenar a sua soltura, do Juiz do Tribunal que o condenou…

Após muito matutar nesta história de gente humana e face à resignação pessoal que senti existir no próprio hortelão, concluí que o título com que a encimei, “Prisão Perpétua ou Reforma de Luxo”, talvez retrate, com fidelidade, o lado negativo e o lado positivo duma vida simples dum moçambicano que o sistema colonial, então existente, fez perdurar, por muitos e largos anos, sobre uma comunidade humana merecedora de outra dignidade …

Maio de 2019 – Pias (FZZ). ”