27 de abril de 2021

Português estranho

Há 11 anos, quando cheguei a Moçambique, achei que estava preparado para as aventuras que se avizinhavam. Enganei-me. Os desafios que apareceram à minha frente ensinaram-me que estava equivocado e fico feliz por isso.

Na primeira formação que dei, com a duração de uma semana, tinha 15 pessoas à minha frente. Adoro dar formação e por isso estava como peixe na água…mas numa água turva, descobri rapidamente.

Na primeira pausa para café a organizadora da formação chamou-me à parte e disse que havia um grande problema: “ninguém estava a perceber nada do que eu dizia”. Gelei. Mas será que não estavam à vontade com o assunto da formação? Não era isso. Ela tentou explicar, hoje entendo que de uma maneira muito diplomática, que não percebiam mesmo o que eu dizia. Mas estando eu a falar português, o que podia estar a correr mal? Ela contorceu-se na sua gentil diplomacia e disse-me: “é um português estranho, que não estamos habituados”. Algo tinha que mudar, caso contrário a formação seria cancelada…

Engoli o bolo que tinha na mão, mas já sem sentir o sabor. Pousei a chávena do café, desistindo de o beber. Agora tinha que digerir o enigma: falamos todos a mesma língua, mas os formandos não me entendiam! Este aviso, na primeira pausa para café, equivale, num jogo de futebol, a levar um cartão amarelo aos 4 minutos. Havia uma semana de trabalho pela frente e, não me saía da cabeça, os formandos não entendiam o que eu dizia.

No regresso à sala de formação, de olhos arregalados, sentindo a pressão, dirigi-me ao meu computador pelo corredor das mesas dos formandos. “O corredor da forca”, pensei, “isto vai correr muito mal”. Continuar a formação no mesmo registo seria a acumulação de amarelos e consequente expulsão antes dos 10 minutos. Tendo que alterar alguma coisa lembrei-me do meu sotaque. “Sim, é isso André, o teu sotaque!!”, pensava eu rapidamente, enquanto se sentavam os últimos formandos, compondo uma moldura aterradora de olhinhos à espera duma solução. Acabado de chegar de Portugal, vinha de facto com um Português diferente. Quer dizer, a língua é a mesma, mas a diferença estava na forma como a punha cá fora. Fez-se luz: “falo demasiado rápido, fecho demasiado a boca e quando ligo as palavras, devem achar que estou a usar expressões estrangeiras”.

Problema identificado. Mas a solução que magiquei, sob pressão, era muito arriscada. Mudar a pronuncia depois do café podia levantar a suspeita de que tinha comido alguma coisa estragada ou estaria prestes a desmaiar por tensão baixa. Arrisquei, mesmo assim. Assustava-me ter uma semana e quinze formandos pela frente e não conseguir dar a formação por causa do meu “português esquisito”.

Quando abri a boca e disse “então vamos recomeçar”, a frase saiu tão lenta e tão cheia de acentos que, não só parecia um parágrafo inteiro, como temi que a curta mensagem tivesse sido distorcida. Os formandos terão ouvido algo do género: “é-n-t-ã-o  v-á-m-o-s  r-ê-c-ô-m-é-ç-a-r”. Arriscando, estava a andar às escuras, sem saber se pisaria em solo firme ou me enfiaria num lodo. Continuei o mesmo registo e a participação dos formandos não demorou a aparecer. Notava-se que me entendiam, conseguíamos falar e a formação decorreu maravilhosamente até sexta-feira, comigo sempre a alterar o sotaque, num tom teatral, mas agarrando-me a esta personagem que me ajudou a desbloquear a comunicação.

Uma “pequena” alteração na minha fala, abriu todas as portas! Hoje usa-se muito a palavra resiliência. Naquela altura chamei-lhe jogo de cintura, com lançamento de 3 pontos no cesto. Penso que desde aí (1 mês depois de aterrar em Moçambique e há 11 anos atrás) mudei o meu sotaque, para me ajudar na comunicação e, apesar de ir lidando com diversas linguagens, mantém-se o bom entendimento.