29 de dezembro de 2019

Bomba de água

O problema inicial é simples: a distribuição de água em Maputo não tem pressão para chegar ao 1º andar dum prédio. Acrescido a isto, o abastecimento não se faz durante 24 horas do dia, mas apenas nalgumas horas, que variam consoante as zonas da cidade.

Como se supera o desafio de tomar banho no 3º andar? Graças a este objecto: a bomba de água.


Uma maquineta cujo nível de prioridade é elevadíssimo, podendo facilmente disputar lugares do pódio com o fogão ou máquina de lavar roupa. Não chega a desenvolver emoções amor/ódio, por se tratar duma relação Homem/máquina, mas é certamente um mal necessário.

As bombas, conjugadas com depósitos de água e respectivas boias, formam um engenhoso circuito que garante o abastecimento de água às casas durante 24 horas. Depósitos em baixo e em cima do prédio, bombas que empurram, bombas que puxam, bombas que dão pressão e a água não para de aparecer nas torneiras da casa. Isto é em si um luxo magnifico de saborear.


As bombas são barulhentas e vibram, se forem instaladas junto à estrutura do prédio. O seu funcionamento por vezes faz lembrar um suave berbequim de barulho metálico, outras vezes faz lembrar uma picareta prestes a entrar-nos em casa. Tudo depende da sua instalação…



Até aqui, tudo mais ou menos bem: a rede abastece água umas horas durante a noite, os tanques acumulam água até ao próximo abastecimento e as bombas colocam o precioso líquido nas nossas torneiras.

Mas como a criatividade humana não tem limites, muitos são os esquemas de desviar água depois dos contadores (dos outros, naturalmente). Vi a aplicação da famosa “puxada” no circuito de água, que normalmente se associa aos fios eléctricos.


Numa das casas em que vivemos aqui em Maputo, o inquilino que lá vivia antes alertou-nos para o custo excessivo de água daquela casa. Estranhando a situação, fiz uma vistoria completa ao circuito da água. Não demorou até descobrir a engenharia do desvio de água, sorrateiramente instalada nos depósitos do telhado do prédio. Havia duas puxadas furadas nos tanques que desviavam a água de forma descarada. Assim, uma bomba de água (e o respectivo contador) alimentavam 3 tanques (3 casas) em vez de 1.

Naturalmente a bomba queimou por excesso de esforço!


No que diz respeito às avarias, entra-se numa série com um número ilimitado de temporadas. Seja a boia que não dá sinal à bomba, seja a bomba de baixo que não puxa, seja a bomba de cima que não empurra, seja a água da rede que naquela noite não veio, seja a bomba que ganha ar e encrava, seja a electricidade que falta e a bomba pára…muitos são os motivos para que esta engenhoca possa falhar.

Não sei se já experienciei todo o tipo de avarias, mas já fiquei várias vezes sem água.

No fim das contas há uma relação de dependência com estas infernais e barulhentas bombas, uma relação de aceitação com os enormes tanques e uma relação de ralação com possíveis esquemas de roubo de água. 


Mesmo agora que vos escrevo, ouço a bomba a trabalhar e sinto o vibrar dela nas paredes. Gostaria de a ter mais silenciosa ou, idealmente, não a ter. Mas se as bombas não fizessem barulho, e os tanques não dessem trabalho, estaríamos a carregar baldes à hora de abastecimento da rede e isso seria definitivamente mais aborrecido.

Vive-se com mais um electrodoméstico bastante útil, é o que é…

29 de outubro de 2019

Coreias em Moçambique


Os sul coreanos viajam livremente pelo mundo, com excepção da Coreia do Norte. Um sul coreano que visite o vizinho do norte sem prévia autorização terá, no seu regresso, uma recepção garantida na prisão.

Os norte coreanos têm os seus movimentos controlados. Ao longo da História são aos milhares os que tentam fugir (outros milhares não o conseguem) e têm que viver clandestinos algures. Os que saem oficialmente fazem-no debaixo dum formalismo apertado e burocrático. São controlados a cada passo que dão no exterior e escutados em cada murmúrio.

Assim, é difícil os Coreanos cruzarem-se.


Moçambique recebe ambas as Coreias e foi aqui que a Yumi, com quase 30 anos, viu pela primeira vez um norte coreano ao vivo. Os sul coreanos são emigrantes universais. Os norte coreanos ingressam programas intergovernamentais. A globalização tem destas coisas e Moçambique foi, por momentos, palco dum indesejado encontro entre Coreias.

Estávamos a dar um passeio numa pacata manhã de Domingo, pela avenida Kim Il Sung (primeiro líder da Coreia do Norte), larga e generosa em árvores que atenuam o fulminante sol. Poucos carros e apenas dois grupos de pessoas, andando em direcções convergentes, curiosamente do mesmo lado do passeio.


Ao observar o outro grupo, a Yumi disse, por impulso e com uma certeza inquestionável: “o grupo que se aproxima é de norte coreanos”. Uma série de questões invadiram-me a cabeça: “Como teria ela tanta certeza se nunca tinha visto nenhum?”, “Como se identifica à distância um norte coreano?”, “Qual a probabilidade de ver um grupo de norte coreanos na rua (se ver um único já é tão difícil)?”.

É verdade que eu ainda estou a desenvolver técnicas para distinguir os Asiáticos pois, à partida, parecem-me todos iguais. No entanto já começo a ficar confortável para distinguir os Coreano dos Japoneses, ou dos Chinês. Mas topar à distância uma nacionalidade que ela nunca tinha visto, é uma análise de exigência elevada.

O grupo vinha em descontraída conversa e conseguíamos ouvir o aproximar do burburinho. De repente um deles terá dado sinal e o silêncio instalou-se. Limitaram-se a caminhar, demonstrando algum incómodo com a presença da Yumi que, suponho, terão identificado também como sul coreana.

Ao passarem por nós conseguimos ver a bandeira na lapela: eram norte coreanos. Estava lançada a oportunidade de um encontro histórico. Quem sabe se o encontro poderia despoletar a reconciliação de 2 países que vivem amuados há décadas. Por momentos sonhei com um acontecimento inédito, apadrinhado pelo primeiro lider norte coreano, abençoado por Moçambique, motivado pela energia sul coreana. Ajeitei a camisola, de forma a estar preparado para o acontecimento.

Mas depois do aproximar dos dois grupos, seguiu-se o mero cruzamento entre pessoas. Não se trocou nenhum olhar, nenhum sorriso, nenhum gesto, nenhum som. Da parte da Yumi houve frieza, da parte dos norte coreanos houve bloqueio de qualquer emoção. Claramente o encontro era dispensável por qualquer uma das partes. 

Nos grupos de norte coreanos no exterior há um bufo infiltrado (que nenhum dos outros membros conhece) e por isso o receio deve ter chegado ao nível da mente, não vá a tecnologia sacar as ideias ao cérebro.

 À medida que eles se afastavam de nós, voltamos a ouvir as suas vozes. O acontecimento trouxe um potencial enorme de um encontro histórico, mas o potencial levado à prática resultou em zero. Acabava de ocorrer um encontro diplomático com omissão de protocolo.

Mais tarde, ao pensarmos no que tinha acontecido, riamo-nos com a prenda irónica que a História nos ofereceu: um encontro entre Coreias, em Moçambique, na avenida Kim Il Sung. Com centenas de ruas e avenidas pelo mundo, qual a probabilidade deste acontecimento?

19 de setembro de 2019

Barata com esqueleto


O alojamento onde vou pernoitar está no limite do conforto. A casa de banho tem um buraco enorme na parede, com destino desconhecido. Não há porta de divisão entre o quarto e a casa de banho, onde a água me foi fornecida em baldes de recurso, pois as torneiras estão secas. No entanto as duas lâmpadas que há acendem, tem uma cama com lençóis (onde não quero examinar a limpeza) e a porta do quarto fecha. Estão reunidas as condições para dormir.

As alternativas a este alojamento não são boas: quartos de ocupação à hora, ou recepções escuras e de intenções dúbias. De maneira, que fico muito satisfeito com a opção de ter uma cama e um tecto até à manhã seguinte.

Quando me preparo para dormir sou despertado por um barulho vindo da casa de banho. Não foi preciso levantar-me, pois apareceu ao alcance da minha vista uma barata enorme na casa de banho. Quando digo enorme não estou a descrever embalado pela aversão que este animal geralmente me provoca. Estou a falar dum espécime que provavelmente transporta genes de dinossauro. Não sei se será o macho alfa, ou a matriarca ou o rei do trono, mas é colossal.

Sem exageros o comprimento daquela barata aproxima-se a uma caneta Bic. Pela forma não há dúvida do que é, mas pelo tamanho poderia fazer-me suspeitar de um pequeno rato. Assim não consigo dormir. Já há uns anos que vou lidando com esta bicharada urbana, mas nunca tinha visto uma barata tão impressionante. Infelizmente já tive que dividir a minha casa com várias pragas de barata, mas, repito, nunca tinha visto nada assim. Podia ser um animal de estimação a deambular pela pensão.

Sem recurso a armas químicas, tenho que resolver aquela coabitação indesejada. Não posso dizer que se trata dum intruso, porque se calhar o quarto é daquela barata e eu, nesta noite, é que sou o intruso. De pijama, saio da cama, calço o sapato do pé direito e dirijo-me devagar ao meu alvo, que parece não se importar com a minha aproximação. Aproveito e lanço-me a ela, pisando-a. Piso com a sola do sapato, transporto o meu peso para a perna atacante e dou uns solavancos. “Afinal foi fácil”, pensei, antes de levantar o pé.

Quando levanto o pé, a barata sacode-se e…levanta voo! Aparentemente pouco afectada, abre as asas e vai para um sítio onde a deixem em paz, declinando a vingança. Arrepio-me e tento manter a calma para perceber o que aconteceu ali. Temo que ela se vire e me mostre os dentes cerrados e olhos ensanguentados de ódio. Mas nada disto acontece, ela parece ter perdoado o facto de eu lhe ter posto em cima dezenas de quilos…e nem foge amedrontada!

Não vou tentar mais nenhuma investida. Não por temer o adversário, que afinal se mostrou pacífico, mas porque sobrevivendo àquela investida, merece seguir em paz. Como se eu tivesse apenas uma hipótese de ganhar o duelo e, perdendo-o, tenho que conviver com o adversário.

Dormi um sono completo.

No dia seguinte, senti necessidade de comentar com alguém da zona, pois receava ter tido alucinações, uma espécie de pesadelo “Metamorfose” (Farnz Kafka). “Ah sim, aqui chamamos de baratas com esqueleto”, obtive como resposta. 

Faz sentido…

2 de setembro de 2019

Plástico


Em pleno oceano índico, o dia de praia prometia. Saboreava-se a matinal brisa marítima e a exclusividade do grande areal.


Aquilo que à chegada parecia uma linha subida de conchas, devida à maré alta da última madrugada, era uma fila de lixo! Longe das notícias sensacionalistas, dos cenários catastróficos, de números pessimistas ou correntes de indignação, ali estava o lixo, à beira mar plantado, exposto de forma fácil de compreender…


Lixo sem nacionalidade e de origem diversa trazido pelas ondas. 

Maioritariamente plástico bastante fragmentado, mas deixando perceber que os objectos originais são vastos, cabendo assim a responsabilidade a todos nós. Infelizmente é difícil encontrar inocentes neste enredo.




Arrastando o meu filho para uma brincadeira na areia, fomos apanhando alguns pedaços de lixo e enchendo um balde. Já que todos, mesmo involuntariamente, contribuímos com um pedacinho de plástico nos oceanos, porque não contribuir com um pedacinho de limpeza?


Depois vim a descobrir que o que fizemos já tem nome, é noticia e pretende arrastar mais pessoas: o Plogging.


A essência é única, dedicando algum do nosso tempo a limpar o que nós e os outros sujamos, independentemente do nome que lhe derem, ou se lhe chamam “desporto” ou “campanha”. 


Neste verão que agora começa (lamento hemisfério norte) teria impacto se cada pessoa levasse 1 ou 2 recipientes (plástico ou não) e apanhe apenas algum lixo entre 2 mergulhos.

No nosso caso, curiosamente, foram 2 brinquedos de plástico que nos ajudaram a limpar…o plástico...


8 de agosto de 2019

Run Yumi, run...


Esta história vem do baú de aventuras, onde esteve durante 7 anos. Um tempo onde a minha futura mulher era a minha namorada e explorávamos alguns horizontes com o desprendimento de 2 aventureiros sem filhos. Sim, os filhos vieram colocar alguma calma nas nossas odisseias, acreditem…e ainda bem, acreditem! Não é bem o caso desta aventura, se bem que correr à frente dum elefante com uma criança ao colo teria elevado a fasquia do desafio. Esta história passou-se à beira do Rio Lugenda, no norte de Moçambique.



Tivemos a oportunidade de passar uns dias na reserva do Lugenda, a uma dura distância de 9 horas de estrada de Pemba, desfrutando do maravilhoso acampamento, da energia das pessoas que o gerem e da magia da envolvência. O cenário é idílico, uma encantada fusão poética com a natureza: somos nós e as árvores e os animais e a paisagem. A vida selvagem é a lei que reina. 




Os elefantes visitam-nos em redor da tenda e, nalgumas noites acordam-nos com o barulho do arrancar das folhas para comer, de tão perto que estão. Às vezes podemos vê-los enquanto desfrutamos dum descanso com vista privilegiada. Por vezes fotografamos um brinde com eles, a uma distância de segurança.



Os elefantes que andam dentro do acampamento, são aqueles cujo território de acção englobava a área do acampamento antes de este ter aparecido e por isso, no contexto de respeito e preservação da natureza, são bem-vindos ao nosso encontro. 

Os “filhos da terra” eram dois elefantes com livre-trânsito e com direito a nome próprio que, a esta distância já não me lembro, mas vamos, de forma prática, chamá-los de “Zangado” e “Aborrecido”. Nesta altura surgia-me a dúvida: estavam os elefantes a domesticar-se ou nós a ficarmos selvagens?



Estávamos no bar, quando a Yumi diz que tem que ir ao carro. A regra no acampamento é que qualquer pessoa que pise no exterior tenha que ter acompanhamento (ou pelo menos supervisão) de um guia. Neste caso foi o Nick que se prontificou a acompanhar a Yumi durante uns escassos 20 metros para ir ao carro.




O Nick é um homem do mato, habituado às mais adversas situações. Conhecedor da fauna e flora como uma biblioteca viva. É ele quem fica no acampamento durante a época das chuvas. São 3 a 4 longos meses sem ninguém no acampamento, sob o juízo majestoso das tempestades tropicais e tentando minimamente manter as infraestruturas e os acessos principais.

Quando me foi dito que ele falava com os elefantes, a minha expectativa saltou vários patamares. De repente estava dentro dum filme de vida selvagem, com guias quase autóctones, sentindo a confiança de que não havia, para o Nick, qualquer surpresa que se revelasse assustadora. 

Qual Jane Goodall, qual Jacques Cousteau. Nós tínhamos o Nick do nosso lado. O que poderia correr mal?


Os elefantes estavam habituados à vibração da voz dele, ele sabia os nomes dos elefantes, aparentemente estava tudo em família. Pois aí foi ele, sem arma, munido apenas de conhecimento do mundo animal e muito autocontrolo até ao carro. A Yumi atrás dele, de chinelos.

Antes que conseguissem chegar ao carro o “Zangado” deu sinal que a presença do Nick e da Yumi o incomodava com um imponente bramido. Do mesmo sitio onde me encontrava, percebi que a Yumi congelou e o Nick apercebeu-se que a tal viagem de 20 metros pudesse dar mais trabalho do que tinha previsto. O “Zangado”, com cerca de 4 toneladas de peso virou-se para eles, mostrando claramente o que o estava a perturbar. Eles conseguiram aproximar-se da traseira do carro.

Neste momento o Nick agarra o braço da Yumi, e estende a outra mão para falar com o “Zangado”, como quem tenta acalmar um bebé prestes a atirar um prato ao chão. Fiquei encantado com o gesto do Nick, ele de facto estava a interagir com o elefante, que parecia responder, mas a sua reacção em nada abrandou. Rapidamente o Nick percebeu que tendo o carro entre eles e o elefante não era suficiente. A distância era mínima para reagir a qualquer impulso do elefante e o peso do carro, convenhamos, era menos de metade do peso dele. Seria deslocado com facilidade com uma trombada.


Instalou-se a tensão e o próximo a actuar ganharia a vantagem decisiva, para atacar ou para defender. O Nick estava a ser encurralado pelo “Zangado” e tinha à sua responsabilidade uma visitante do acampamento. Sempre que o Nick tentava falar com o “Zangado” este bramia firme e não dava folga para pensar no que fazer. Neste momento o Nick reagiu, ainda agarrado ao braço da Yumi, mas encaminhando-a para a zona do bar e gritando implacável: “RUN YUMI, RUN”, com um vozeirão que não ficava muito atrás do som do elefante. Uma solução de recurso, mas ainda uma solução possível, dadas as poucas alternativas que o “Zangado” estava a dar, enfrentando-os, bramindo em tom ameaçador e abanando as orelhas.


Eu, a assistir a tudo do bar, de forma impotente, vejo nesse momento uma espingarda de 2 canos surgir no meu horizonte ocular. Apontada ao céu, certamente para assustar, mas era uma espingarda, de metal frio, pesada e com balas lá dentro. No momento em que o guia carregou a espingarda eu saí do filme de vida selvagem onde ainda me encontrava. Lembro-me de pensar: “porra, isto é sério”. Sim, podem dizer que talvez fosse um pouco tarde para acordar do “filme”, mas até àquele momento pensei que a situação, embora difícil, estivesse controlada.

Aquilo que vi de seguida foi o momento bíblico mais impressionante depois de Jesus caminhar sobre as águas. A Yumi corria sem tocar com os pés no chão. Só não foi batido o recorde universal dos 20 metros porque as regras não permitem que se percorra as distâncias a voar. Disparada por um jacto invisível, com a vida como principal motivação, nem teve tempo de gritar ou dizer uma simples e reconfortante asneira. Chegou ao bar a salvo…


Depois da Yumi sair, o Nick ainda ficou no mesmo local e a conversa com o “Zangado” teve um desfecho surpreendente. O Nick continuava a apelar à calma. O elefante parecia menos agressivo, embora ainda rabugento e acabou por virar costas e sair. O Nick voltou para o bar e naturalmente houve rodada de Gin tónico…



Nick, está um macaquinho no caminho da cadeira onde deixei o meu livro. Que faço agora…?

31 de julho de 2019

Troca de galinhas

Parece que o meu amigo Carlos Alberto ficou entusiasmado ao partilhar a primeira história com a Tertúlia. Eu fiquei encantado, agradeço mais esta história e abro a porta a outras que virão. Hoje a história é sobre uma troca de galinhas, um acto de justiça que sempre marcou a alma boa e generosa do Magalhães das Forças. Uma história que podia ser fruto da imaginação ou banhada em ficção científica, mas não. Aconteceu, em África, aconteceu ao Carlos Alberto e mostra-nos como a riqueza das histórias representam um testemunho cultural tão relevante e transcrevo-a:


“Conheci este Homem na década de 50, do século passado, claro. Por esta altura eu terminava o liceu e ia à Beira nas férias de Verão (de Junho a Setembro, era a época mais fresca) e recordo que o Magalhães das Forças, de seu nome José de Magalhães, nascido na Metrópole, como antigamente se dizia, da zona de Aveiro, me contou que se fizera marinheiro embarcando num cargueiro. Tinha partido à aventura, antes da I Grande Guerra, descendo pelo Atlântico fora e subindo o Indico até arribar a um local inóspito, cheio de mosquitos e malária, uma língua de areia, rodeada de mangal e “matope” (lodo), conhecida inicialmente por “Posto do Aruângua”, a foz do Rio Pungué ou, noutro vocabulário, o futuro grande porto da Beira. Nome este pelo qual foi batizada, em homenagem ao filho mais velho do nosso Rei, D. Carlos, ambos barbaramente assassinados em 1 Fev 1908. Ainda hoje não percebo por que é que o Samora Machel não mudou o nome de “Beira”, assim como fez com Lourenço Marques, para “Aruângua” ou “Pungué” ou “Chiveve”, tudo nomes indígenas. Alguém me sabe explicar?

A alcunha de “Magalhães das Forças” adveio-lhe pela circunstância de, após a Grande Guerra, ter começado a entrar em torneios de “catch as catch can”, que nós hoje apelidamos de “luta livre”, da qual, aliás, fui um grande fã. Saludes e José Luis (espanhol e português) foram dois “grandes” nomes de cartaz, do Parque Mayer, que eu frequentava, com alguma assiduidade, nos meus tempos de ramboia. Ainda estou a ver os cartazes que o Magalhães das Forças tinha afixados na garagem da sua casa, com a fotografia dele em várias posições e mostrando toda a sua capacidade física e muscular, para impressionar o público admirador.

Lembro-me do Magalhães das Forças me dizer que a sua primeira casa foi uma jangada, ancorada na foz do Pungué, onde os seus seis filhos, todos à volta dela, aprenderam a nadar. Ele atirava-os à água, e depois ia buscá-los, antes que algum crocodilo se aproximasse.

Um dia, este meu amigo, cuja memória muito prezo, convidou-me a ir visitá-lo à sua “Quinta do Leopardo”, uma pequena herdade, situada na Manga (arrabaldes da Beira) onde tinha uma “surpresa” que me queria mostrar. Nesta pequena quinta, ele vivia com os seus pequenos animais, “amigos de sempre”: galinhas, patos, perus, pombos, rolas, perdizes, galinhas do mato e uma grande jiboia, a tal “surpresa”. 

Quando lá cheguei deparei-me, com espanto, com uma gaiola toda em madeira, talvez de 2 por 3 metros, toda fechada, com uma rede de galinheiro na parte da frente, através da qual se divisava aquilo que parecia ser uma grande cobra. Estava toda enrolada sobre si mesma e com a cabeça meio escondida. Ao lado da cobra, que estava imóvel, saltitava e depenicava, pelo chão de terra, uma galinha, toda alegre e bem-disposta.

- Oh Sr. Magalhães, o que é esta cobra? – perguntei

- Esta cobra é uma jiboia, muito bonita e muito mansinha. Eu já ta vou mostrar – responde, atencioso, o Magalhães das Forças

Entretanto, ele chama um miúdo, que ali trabalhava, e diz-lhe para correr e apanhar uma galinha qualquer, das que andavam à solta, e trazê-la ali para a capoeira da jiboia. Comecei a ficar de boca aberta: “Porquê duas galinhas ao pé da jiboia”, pensei. Momentos depois o miúdo estava a abrir a portinhola da jiboia e a meter uma galinha e a retirar a que lá estava.

- Sabes, Carlos Alberto, as jiboias só comem animais vivos e esta galinha, que saiu, já cumpriu o seu dever. Há oito dias que ali estava a fazer companhia à sua “amiga” e acho que seria muito injusto mantê-la por mais tempo. Por isso é que a substituí. É o que faço todas as semanas. – explicou o justiceiro Magalhães

A seguir, com muita calma e autocontrolo, vejo o meu amigo Magalhães das Forças ajoelhar-se, abrir a porta da capoeira, aproximar-se muito devagarinho…e meter a mão suavemente no “enroscado” da jiboia. Puxou-a para fora “como se nada fosse”. O animal parecia acordar dum sono profundo e o Magalhães das Forças, já de pé e sempre com muita cautela, com uma das mãos a cerca de 10/15 cms da cabeça da jiboia, para a domar em caso de emergência, coloca-a por trás do seu pescoço e estende os braços, um para cada lado, de forma a poder-se admirar o réptil em toda a sua beleza. Teria uns 3 metros e uns 25/30 kgs de peso, com a pele fria e parecendo escameada, dum cinzento e amarelo-esverdeado lindo.

O Magalhães das Forças ofereceu uma visita da cobra, dizendo “Carlos Alberto, anda aqui pegar nela, ela é muito mansinha, não faz mal nenhum desde que não se assuste. E sobretudo não é venenosa “. Eu tive medo e não quis pegar nela. Mas ainda lhe toquei um bocado e fiz-lhe umas “festinhas”… "

16 de julho de 2019

Aquilo é pássaro


Uma das coisas que adoro no meu trabalho são as saídas frequentes para o campo, “onde as coisas realmente acontecem”, como costumamos comentar entre colegas. Saio da secretária, abandono o computador e o local de trabalho passa a ser debaixo duma árvore, em ruas sujas ou inundadas, num matagal cheio de bichos suspeitos, ou com paisagens arrebatadoras.

Deixo a zona de conforto e vou caminhar debaixo de condições climatéricas impiedosas (que geralmente pendem para o calor abrasador, pois não me lembro de sentir frio em Moçambique). Passo horas sem comer nada, ou dependendo dos produtos agrícolas que se possam apanhar no caminho. Depois de terminada a garrafa da água trazida de casa, instala-se o receio sob qualquer outra água que apareça à disposição.

Ando por lugares que são parentes muito afastados das estradas de alcatrão. Numa distância genética tão vincada que só por favor lhes posso chamar de picadas de estrada. Muitas vezes não passam de trilhos camuflados pela vegetação que me ensinaram o novo termo de “caminhos de pé posto”.

Apesar de haver muita tecnologia e algoritmos envolvidos no que faço, encanta-me bastante a componente social no contacto com a população, cujo diálogo às vezes não passa de uma troca de olhares, limitada pelo desconhecimento mútuo da língua alheia. Experiências difíceis de ter para quem o trabalho se restringe às cidades, mesmo vivendo em África (já há muita civilização citadina e ocidentalismo no continente mãe…). E é assim que, exausto e sujo chego ao fim do dia com a pele agradavelmente electrizada e uma viva sensação de aprendizagem…

Numa destas incursões, num caminho que tinha deixado o alcatrão há vários quilómetros, enquanto recolhíamos informação num terreno, avistei um pássaro no ar. Um pássaro grande, preto, em voo circular calmo, numa firmeza apenas conferida a determinadas espécies. Andava certamente a fisgar uma presa ou a exibir-se a uma fêmea. O animal cativou a minha atenção e perguntei ao senhor que inquiríamos: “o que é aquilo?”

O homem interrompeu o que estava a fazer com alguma relutância e observou o céu. Respondeu prontamente “Aquilo? Aquilo é pássaro”. Aguardei alguns instantes para perceber o que tinha acabado de acontecer. Suspeitei de algum gozo, mas o impenetrável rosto do homem não abria qualquer probabilidade de ter sido uma piadinha (de mau gosto, por sinal). Coloquei a hipótese de ele suspeitar que eu estava convencido tratar-se duma vaca que tivesse ido dar um passeio pelos céus. Mas se assim fosse o rosto iria transmitir algum sarcasmo e não era o caso.

Curioso como às vezes uma resposta, de tão curta que é, nos faz pensar tanto! Estaria presente um clássico exemplo de duas pessoas que falam a mesma língua mas não se entendem facilmente devido a qualquer outra barreira?

O sentido prático é inconciliável com o romantismo, está visto. Percebi que a resposta foi directa ao que perguntei. Talvez a minha curiosidade tivesse atropelado o facto óbvio de que, se está a voar, é um pássaro e generalizei a pergunta mais adequada, que seria “que pássaro é aquele?”. Talvez as minhas expectativas ansiassem por um diagnóstico “National Geographic” com a explicação do nome em latim, hábitos alimentares, padrões sociais e algumas histórias adicionais para conhecer melhor o espécime em causa. Mas a minha pergunta foi “o que é aquilo?” e a resposta foi simples e assertiva.

Não há que complicar onde as coisas podem ser simples. “Obrigado e bom dia”, respondi, sem qualquer outro comentário, de lição aprendida na bagagem…

3 de julho de 2019

Cidade das bicicletas


Há cidades cujas rotinas ou características lhes atribuem alcunhas.

A nível de Moçambique temos, por exemplo, a cidade das acácias (Maputo) ou a cidade da 3ª maior baía do mundo (Pemba). A nível internacional temos a cidade que nunca dorme (Nova Iorque) ou a cidade do amor (Paris).

A cidade que vos trago hoje não figura neste altas de alcunhas, mas devia...

Quelimane é uma cidade plana, onde qualquer desnível de 1 metro tenha que ser vencido com a ajuda de degraus. Os acidentes topográficos mais significativos são mesmo os buracos das estradas. 



Acredito que este tenha sido um dos factores para que a bicicleta se tenha instalado em Quelimane. Desconheço a origem deste hábito na cidade, mas hoje as bicicletas têm prioridade sobre os carros. E como não ter prioridade?

  1. As bicicletas fazem bem à saúde;
  2. As bicicletas quase não fazem ruído;
  3. As bicicletas não poluem;
  4. As bicicletas dificilmente provocam engarrafamentos;
  5. As bicicletas não consomem combustíveis fosseis;
  6. A bicicleta é um descapotável que sai muito mais em conta;
  7. As bicicletas produzem energia;
  8. A bicicleta reduz o stress na circulação citadina;
  9. As bicicletas vão onde qualquer transporte vai (o constrangimento é o tempo, sempre esse malvado do tempo…);
  10. Uma mesma bicicleta leva pessoas, carga ou animais;
  11. A bicicleta estaciona-se em qualquer lado;



Aahhhh a bicicleta, como não? Acrescido a este fenómeno, existe o táxi bicicleta, que é a pérola da circulação citadina em Quelimane. Por 10 mtcs (cerca de 15 centimos de euros) vai-se a todo o lado na cidade. Bicicletas com assentos almofadados e suporte para os pés. Os motoristas podem ser mais ou menos conversadores, mais ou menos sorridentes (como em qualquer táxi). 
Circulam nas ruas como a água escorre pelos leitos dos rios e em menos de um minuto passará uma bicicleta táxi vazia para nos levar onde quizermos.


Numa bela manhã de Sábado, enquanto aguardava pela hora do voo para Maputo, dediquei-me a umas agradáveis horas a pé pela cidade a fotografar este interessante fenómeno, que partilho:

Cruzamentos de bicicletas e nada mais do que bicicletas


A tratar de expediente no banco de trás.



Aquele ponto mágico da cidade onde param os autocarros e começam as bicicletas.


Prémio equilibrio da manhã.


Bicicleta de carga.


Bicicleta com sombra.


Kit mãos livres, ou melhor, kit volante livre e mãos no telemóvel.


Bicicleta de transporte familiar.


Bicicleta carregando outra bicicleta.


Bicicleta adaptada.


Bicicleta do talhante.


Apoio técnico, garantido em muitas esquinas da cidade.



- Táxi, táxi, tenho um encontro do outro lado da cidade e não posso atrasar nesse trânsito infernal…


- É para já.




4 de junho de 2019

Bushfire 2019

No final de Maio, na zona sudeste de África, aguarda-se com saudável ansiedade pelo festival BushFire, na Eswatini (novo nome dum país anteriormente chamado Swazilândia). Poupem-se ao labirinto mental de pensar na logística de mudar o nome a um país! Concentremo-nos no festival…

Cerca de 20 mil pessoas de várias origens rumam à arena do festival. Os bilhetes esgotam um mês antes e quem fica a pensar até à última hora, perde o lugar.

O alojamento em redor rebenta pelas costuras, havendo marcações com um ano de antecedência, ou seja, reserva feita no momento em que acaba a edição anterior do festival!

Uma opção muito viável é o acampamento, numa das várias áreas em redor do festival. Distam de alguns minutos a pé da festa e são, durante quase todo o tempo, uma extensão da folia. No entanto, quando chegamos e somos encaminhados para os nossos aposentos, tenho a sensação de estar num campo de refugiados.


Ideia que se esvanece assim que levantamos o fecho éclair da forte lona do abrigo. Os pormenores existentes traduzem-se num conforto total: cama, mesa-de-cabeceira e pequeno candeeiro. Não precisamos de mais. Esqueço a ideia inicial…estou em casa. O som de fundo é festa, com concertos ao longe e mais tarde com os últimos bêbados a chegar à tenda, momentos antes do nascer do sol. Ao amanhecer é a vez da sinfonia dos bebés arrancarem da cama os pais sonolentos pela festa. Na prática, o acampamento quase não dorme.




O pequeno-almoço é uma agradável surpresa, com uma panóplia de oferta gastronómica, fica bem acima de muitos hotéis onde fiquei. É também no pequeno-almoço que nos podemos deliciar com o desfile de pijamas, cabelos e pantufas farfalhudas. Hábitos culturais ou febre do festival, o certo é que estive boquiaberto a admirar, antes de meter o café da manhã à boca. Os pijamas são de polar, pois à noite a temperatura chega aos 8 graus. Mas não são simples pijamas…são fatos macaco a imitar animais, com pompons no rabo e orelhas compridas. Os cabelos, sejam naturais, sejam falsos, representam uma montra digna de concurso. As pantufas são surreais. Com motivos como leões ou pandas, cheias de pelo, passeiam indiferentes à poeira do chão. E a cereja no topo do bolo: roupão! Nunca me lembrei de levar um roupão para acampar, de facto…que falha!







Depois de divina refeição, as tendas ganham outra cor.


Eis algo que nunca me ocorreu na mente em toda a minha vida: fazer fila matinal à porta do festival e ser um dos primeiros vinte a entrar. Mas o cartaz é intenso, as crianças acordaram há 4 horas e às 10h da manhã aguardamos que abram os cadeados. 



Tudo a postos, com carrinho de bebé incluído..."Fire is my favourite colour"!



Sem pijama, mas vestida de princesa, a Bia entrega-se à atmosfera do festival…



Aqui há gente de todos os tipos. Desde o pé descalço à super produção, desde aquele que estudou minuciosamente o alinhamento e tem uma agenda dos palcos àquele que ainda nem viu o cartaz. Há quem tome o pequeno-almoço acompanhado duma garrafa de vinho, e há quem prefira o chá matinal acompanhado de poesia. Mas somos todos normais. Há uma sensação familiar neste festival que nunca senti antes.



Há vários palcos em acção, cada um com um ambiente especifico, a acontecer ao mesmo tempo. Dificil é escolher. 



O espaço das crianças, onde se pinta, pula, dança, brinca e se comem guloseimas é, a dada altura do dia, o local mais activo do festival, com os pais a quererem aproveitar tudo enquanto os seus petizes se divertem.

De dia estamos de manga curta, à noite a temperatura vai abaixo dos 10 graus. Mas ninguém verga. Entre casacos, gorros e fogueiras espalhadas pelo recinto, o foco é em curtir o ambiente e a música.



Dos concertos que vi, a minha retina ficou dividida com duas actuações, que partilho:

BlackmotionDois malucos em palco que fazem a festa toda. Fazem os foguetes, lançam os foguetes, mas as canas ficam a dançar nas estrelas. Nada nem ninguém fica indiferente. É impossível ficar parado com este som, mesmo para os pés de chumbo.


Meute: Vários homens, formalmente vestidos, com instrumentos portáteis, pois ninguém fica no mesmo sítio, parecendo terem bicho-carpinteiro na palma dos pés. Produzem música electrónica com instrumentos da família dos clássicos. Surpreendente e contagioso…

Ao sol há aulas de tambor para todas as idades.



Na arena é uma festa, enquanto a música rola. Dança-se no intervalo das actuações. Não há tempo a perder.





Obrigado Bushfire e até para o ano…