18 de maio de 2011

Não há-de ser possível

Lembro-me que, quando ia com frequência, levar o carro ao mecânico, a acção revelava-se penosa. Ainda eu não tinha acabado a frase de diagnóstico da avaria e já o mecânico abanava a cabeça a dizer não! Quando eu terminava, apressado pelo stress daquela reacção, a resposta vinha então de forma sonora: “pois, mas isso não vai ser possível!”. Seguiam-se uma série de silêncios, ideias, contra propostas e, no final, a avaria reparava-se sempre!! Seja como for, desisti de lá ir, como devem calcular…

Os Moçambicanos têm por hábito dizer que herdaram muitas coisas dos portugueses, mas na maioria das heranças apenas constam defeitos. Não nego que os portugueses têm muito de inércia, preguiça e hábito de reclamar mas os nossos irmãos Moçambicanos aprimoraram a técnica, não haja dúvida.

Há quem chame de “desporto nacional”… Eu diria mal nacional, não unânime, mas bastante abrangente. É que tantas vezes, mesmo antes de começarmos a frase, sentimos da pessoa uma rugosidade afectuosa (expressão que inventei agora mesmo, mas que espero que a entendam).

Sento-me num restaurante, o empregado aproxima-se, diz a cordial “boa noite” e fica a olhar para mim espantado, como se não estivesse à espera daquele meu gesto de me sentar numa das mesas e viesse incomodar a sua paz. “A ementa, por favor”, digo. Frase que lhe dá um flash de reacção e o faz lembrar que está a trabalhar num restaurante. Volta à realidade, com um espasmo de surpresa (fingindo ser a primeira vez que se esquece da ementa) e lá vai enfim buscar o menu. Mas que raio o homem vinha aqui fazer sem sequer trazer o menu?, penso eu.

Entro numa loja, onde está um macua a atender. Refiro-me especialmente aos macuas, porque são mestres na expressão facial minimalista. Digo bom dia, eles respondem com um ligeiro levantar de sobrancelha e um soluço de ar que no inicio até me afligia, mas que quer dizer, em linguagem preguiçosa: bom dia! Este soluço, um aspirar repentino de ar, é algo que só visto. A pessoa, de repente, tem uma pequena convulsão, parecendo que lhe falta o ar. É angustiante, pois pensamos que vai ter um enfarte ali mesmo. Ficamos boquiabertos, à espera dos próximos sintomas, mas já olha para nós impaciente à espera do pedido. Não sai nenhuma palavra da boca deles. Peço algo e o empregado responde um estranho e agressivo “HÃ?”, como se eu estivesse a pedir costeletas numa loja de ferragens! Não, simplesmente o empregado não estava para ser incomodado e tinha o sistema auditivo em stand-by. Até pode ter o que procuro, mas faz que não percebe. Até pode estar à vista e eu apontar, mas diz que aquilo é outra coisa…e continua a sua tarefa de hibernação.

O “Hoje não há-de ser possível” é uma frase muito comum que sai da boca das pessoas que atendem. Mas a frase não sai com uma expressão de pena por não conseguirem servir o meu pedido. Sai com um desleixo de quem nem se quer parou para pensar se poderá de facto fazer ou não. Às vezes até acho que com um pouco de troça, aproveitando a relação cliente/provedor, em que o primeiro depende do segundo.

Segunda-feira é o inicio da semana, ainda não está pronto. Quinta-feira é véspera de sexta e amanhã vai ser difícil. Sexta-feira é sexta-feira e agora só na segunda-feira. Restam dois dias, terça e quarta, para servir, satisfazer e cumprir. Mas nesses dias o chefe ausentou, o sistema está em baixo ou, mortiferamente, como um punhal, “não há-de ser possível”!

A ginástica para nada fazer é de louvar, mas o resultado é desastroso, inútil. Se há alguma tarefa para fazer, só amanhã, porque hoje não há-de ser possível. Amanhã esqueceu a caneta e quando lhe empresto a minha azul, só escreve bem com a preta. A cadeira chia e assim não se concentra, troca com outra, mas é baixa, já não dá jeito. A luz está trémula e assim faz doer a vista. Troca-se a lâmpada?, está muito ocupado. Chama-se um técnico?, demora semanas. Falamos em pé para tentar dar seguimento à tarefa, mas toca o telefone e é inadiável. Desaparece 2 horas e quando volta acha que só se ausentou apenas por dois minutos…mas suficientes para apagar da memória o que estávamos a fazer. Explico de novo. Epá, mas isso agora só amanhã…hoje não há-de ser possível!

É uma tarefa difícil se tiver que atribuir um ritmo musical a esta dança. Diria que nem chega a ser ritmo. É um primeiro ensaio de instrumentos, quando ainda se apertam as cordas e se limpam as trompetes. Ouve-se o folhear das pautas, mas não para lê-las…só para tirar o pó e estudar a dinâmica da viragem de cada folha em palco. Ouve-se o primeiro instrumento a furar o silêncio, mas logo arrastam uma cadeira para reajustar o palco…

O meu amigo Hélio é um Moçambicano negro de gema, proveniente da Beira. Trabalha no seu serviço e faz muitos biscates por fora. Por vezes usa quase todas as 24 horas do dia para os trabalhos renderem e nunca diz que está cansado. Gosta de falar alto, pausado e incisivo. A acompanhar isto, faz um gesto da mão com polegar e indicativo juntos, pautando os seus dizeres, de forma que as frases saídas da sua boca parecem autênticos decretos de lei. Uma vez, numa sala cheia de Moçambicanos, diz: o preto nunca há-de evoluir…se é muito, é porque é muito; se é pouco é porque é pouco. Nunca está satisfeito!” Ninguém na sala contra argumentou.