16 de junho de 2012

Cadastro de terras

A terra é propriedade do estado e não pode ser comercializada: assim diz o artigo terceiro da lei de terras em vigor em Moçambique. Apesar disso, as pessoas ocupam naturalmente a terra. Ocupam mas não têm posse dela, apenas possuem o direito de a usar. Direito esse que sim, se negoceia, compre e vende. É um conceito usado nalguns países, com um fundamento teórico de grande de valor: a terra a quem a trabalha. Quem não faz nada com a terra perderá o direito a ela...
Aqui se baseia o meu trabalho: quem está onde a fazer o quê? É uma espécie de Big Brother em forma de mapas, mas que constitui uma base de informação poderosa e necessária a qualquer intenção de gestão de terras. Os dados recolhidos podem ser usados para muitos fins, dependendo das vontades políticas. Os trabalhos estão a decorrer no norte de Moçambique e prevê-se que durem até meados de 2013.


A recolha dos dados propriamente dita é uma das componentes que ferve neste momento. Porta a porta, parcela a parcela, entrevista, medição e testemunho. Simples e eficaz. O público-alvo é muito claro: milhares de pessoas que estão a viver e usar determinada terra, mas sem qualquer documento que os relacione com o espaço. É normal que se perguntem “mas então como se saberá quem é o legítimo dono?”. Sabe-se por duas fontes:

-Testemunhal: instrumento cuja origem se esquece com o tempo e que ainda hoje           serve, sendo fundamental, em várias situações;

- Ocupação pacífica do solo: situação abrangida pela lei e que prevê que se alguém ocupa de forma pacífica um terreno, por determinado tempo, ganha direito aquele terreno, passando a ser sua posse (ou o terreno ou o direito, dependendo do país). Em Portugal chama-se usocapião e o prazo é de 25 anos. Em Moçambique chama-se de ocupação de boa fé e bastam apenas 10 anos.


O assunto é sensível. Entramos nas casas das pessoas, às vezes em equipas de 6, perguntamos coisas, medimos os limites e vamos embora. Qualquer um concorda que não é fácil! Daí a importância de sessões prévias de esclarecimento. Seja em Português ou na língua local, a mensagem tem que passar. Conta-se com pessoas influentes da zona que, para além da estrutura administrativa, inclui os chefes locais. Várias são as iniciativas. Pode começar com cânticos para afastar o frio inicial e dar vós à população. Depois é como dá: exemplos, menções a lições estrangeiras, troca de experiências...

Pemba, 24, Agosto, 2011

Pode-se recorrer à expressão teatral, improvisando um texto, com tradutor ou não. Exemplifica-se o que se vai fazer a cada porta, para que o(a) proprietário(a) esteja alerta quando a equipa chegar. No final há ainda um apelo à colaboração de todos para que tudo corra conforme e seja mais facilitado o processo.

Cuamba, 25, Fevereiro, 2012

Cuamba, 25, Fevereiro, 2012

Mocimboa, 16, Abril, 2011


Mecufi, 1, Fevereiro, 2011


Muitas das pessoas olham com espanto para a antena GPS, ou mais corretamente, GNSS (Global Navigation Satellite System). Mas rapidamente divagam em hipóteses do que aquilo pode ser: máquina fotográfica, polvilhador, arma para os pássaros, enfim, muita imaginação. Demonstra-se (tanto quanto se pode ultrapassar a sua leiguice) e dá-se o tempo que quiserem para observá-lo.

Mas no que toca a perceber o valor da posse de terra, a experiência ensinou-me, não há escolaridades, cores, religiões nem idade que se sintam perdidos. O valor da terra é bem conhecido, e no caso de agricultura, é dela que vivem sem hipóteses de usar o supermercado para compras de recurso. 

Mecufi, 13, Novembro, 2010

Em ambiente rural é onde fico mais impressionado. Os responsáveis dos terrenos caminham decisivos, descalços, afastando o mato cerrado. À volta só vejo vegetação, ficando muito difícil para me orientar, mas para eles não. Param, levantam a cabeça para alinhar árvores que eles conhecem, apontam para o chão e dizem: é aqui. Nem por um momento me passa pela cabeça duvidar e nada mais nos resta do que ficar boquiabertos e medir as coordenadas...

Malema, 16, Maio, 2012

Em ambiente urbano chega-se a discutir 20 cm de terra, porque o muro tombou ou porque a vedação está torta... Uma vez era uma senhora que nos ouvia com muita atenção. Não mexia a cabeça em sinal nenhum, mas estava a colaborar. Quando lhe pedimos para ver os limites, começou a andar...em direção à rua. Ia-nos olhando pelo canto do olho e andava. Quando chegou ao meio da rua indicou-nos o limite com o indicador. “Minha senhora, aí não pode ser, está no meio da rua!”, dissemos. Ela então recuou calmamente, com a mesma expressão e, junto à casa refez o limite. Medimos e fomos embora. 

O GNSS anda pelos labirintos, incansável, a medir tudo o que lhe pedimos. Seja engolido por capim, atravessar rios, com vista para o mar. Há também os locais quase inacessíveis, em áreas urbanas, onde alguém planeou mal o telhado e nos obriga a uma ginástica diária.

Pemba, 30, Julho, 2011

Malema, 16, Maio, 2012

Quelimane, 24, Março, 2012

O cadastro de terras, valor reconhecido de gestão de território, não é tão elementar quanto parece. Estima-se que, em todo o mundo, apenas 25% da terra está formalmente registada. Poucos são os países com cadastro de terras completo. Na Europa estima-se que pouco mais de meia dúzia o tenham o cadastro completo e funcional.


Não é que seja obrigatório registar a terra, diga-se, mas é muito importante. Um ser humano não deixa de o ser se não tiver bilhete de identidade, mas abrirá mais portas se o tiver. O que já fizemos aqui é sempre pouco, mas é alguma coisa. O esforço que se faz constrói uma ferramenta informativa e visual de grande valor em várias frentes de ideias: melhorar a circulação dos bairros, construção de melhores condições sanitárias, dinamizar o comércio e dar a conhecer a cultura, artesanato, serviços, assim como apoiar as transações dos ditos direitos. A área que já registámos, de aproximadamente 39 Km2 daria para conhecer cada centímetro da cidade do Porto, ou metade da ilha de Manhattan... Estamos agora com cerca de 76.500 parcelas registadas em 4 províncias. Um feito notável, que parece chamar a atenção dos órgãos de comunicação social.


CERCA de 17 mil pessoas nas províncias de Nampula, Cabo Delgado, Niassa e Zambézia já possuem o seu Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT), como resultado dos serviços oferecidos pelo Projecto de Acesso Seguro à Posse da Terra, no âmbito do processo de regularização da posse de terra, financiado pelo MCA-Moçambique e implementado pela DNTF -  Direcção Nacional de Terras e Florestas.” Maputo, Segunda-Feira, 11 de Junho de 2012:: Notícias


Sendo, em princípio, uma mera medição de terra, muito se envolve com a parte social e com particularidades culturais. Mal entendidos, mensagens mal passadas ou crenças tradicionais, podem-se colocar no meio do trabalho.

Num dos locais as pessoas não percebiam o que era isso da sua própria terra. Estavam todos convencidos que viviam em terrenos cedidos pelos colonos e, com muito respeito, aguardavam o dia em que a teriam que devolver. Desmistificada esta ideia em reunião pública, rompeu na sala uma comovente orquestra de palmas e cânticos.

Noutro local as pessoas entrevistadas não sabiam o nome dos conjugues, mesmo que casados há anos. Podemos perceber que nalguns casos raros (e estranhos) isso poderá acontecer nos primeiros meses do acordo matrimonial, mas às tantas torna-se uma informação impossível de ignorar! Sendo informação importante tendo em vista a cotitularidade, a partilha do uso do terreno, as equipas começaram a ficar confusas. O fenómeno continuava e os inquiridores ouviam por muitas vezes “oh marido, qual é o teu nome mesmo?”. Averiguado o fenómeno descobriu-se que aquelas pessoas acreditam que se disserem o nome do conjugue isso trará problemas para o casamento. 

Mocimboa, 13, Abril, 2011

Durante a formação às equipas de campo também os desafios são muitos. Numa dessas formações, falei para uma audiência aparentemente atenta. Fitavam-me meneando a cabeça em sinal afirmativo. Eu prosseguia, mas os olhos deles iam arregalando. Ao fim de 40 minutos veio o golpe. Interromperam-me o discurso com a intenção de falar. “Vão colocar uma dúvida”, pensei. Hesitantes, disseram: “senhor, não estamos a perceber nada!”. Podem imaginar a sensação! Mas confesso-vos, aprecio mais uma golpada destas, fria e frontal, do que gente hipócrita que não interrompe e vão para casa baralhados e sem aprendizagem. Ali só tinha duas hipóteses: ou estrangulava o meu ouvinte (vontade que me soprou o pensamento) ou exercia o jogo de cintura e resolvia o entrave, fosse qual fosse. Depois de 5 minutos de troca de ideias surgiu a solução, que resolvia um problema linguístico. Uma única expressão em língua local desbloqueou tudo e abriu a janela ao entendimento. Ainda hoje essa equipa trabalha connosco e registaram a sua própria aldeia, com mais de 1700 parcelas. 

Nampula, 28, Março, 2012

No final de todo este processo cada parcela recebe um título, que aqui se chama DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra). Documento que, pela via clássica, poderia levar 2 anos a ser tratado e poderia custar mais do que muitas bolsas permitem. No âmbito deste projeto o documento não leva mais do que alguns meses (teoricamente 2 meses) e custa ao titular uma fotocópia do seu documento de identificação. Na posse deste documento o direito ao uso da terra é melhor reconhecido pela lei, o titular pode pedir empréstimo para construção ou poderá vender e quem comprar saber bem o que compra. Neste momento entregámos cerca de 17 mil títulos e muitos mais virão...

Mocimboa, 12, Abril, 2011

O grande objetivo é pormos nos carris um LIMS (Land Information and Management System) que em português se traduziu para SGIT (Sistema de Gestão de Informação da Terra). Seja qual for o termo esta é uma ferramenta fundamental para valorizar todo o esforço feito. Armazenará milhares de parcelas de informação; fornecerá estatísticas com alguns cliques; ajudará a saber as áreas que estão ocupadas ou livres; e vai permitir facilitar a impressão de documentos oficiais.

Mocimboa, 20, Julho, 2011

Maravilhoso, diriam. E eu também. Mas a dificuldade é colocar um sistema demasiado automático em hábitos mais conservadores, onde os levantamentos têm sido feitos nalguns casos, a fita métrica, ou GNSS de baixa precisão. Os processos não passam do papel e a informatização nem sempre é uma realidade.

Mecufi, 06, Julho, 2010

Posso-vos dizer que já houve anteriormente uma iniciativa semelhante. Por razões que ainda desconheço e já nem pergunto, não funcionou. A minha expectativa é conseguirmos, claro. Sabendo das dificuldades mas dando o nosso melhor (desculpem a banalidade da frase, mas saíu-me...não me apetecem rodeios). Quero, no final deste projeto, ver uma máquina de gestão de terras para a qual contribui e da qual aprendi muito.

Centenas de pessoas estão a ser formadas em várias frentes (campo, gabinete, componente processual, administração de terras, etc). Milhares de pessoas foram beneficiadas com um precioso documento que lhes atribui legal direito de uso da terra. No entanto a cobrança de taxas sobre o uso e transação da terra é um capítulo adormecido. Seria essencial para colocar o registo local de terras a rolar de forma autónoma em cada local. Assim me pergunto muitas manhãs, em frente ao espelho, qual a solução se não houver sustentabilidade e este tipo de iniciativas ainda depender de financiamento externo?