12 de abril de 2016

Travessia do Incomati

Quem pensar que atravessar um rio é uma mera deslocação de uma margem para a outra, deve viver muito infeliz! E o mais grave é que desconhece esse estado de espirito.

Podemos dissertar sobre as características diferentes de duas margens banhadas pelo mesmo rio. Podemos ter várias teorias sobre como a navegação enfrenta a adversidade das águas. Mas isso eu deixo para os entendidos na matéria.


Na zona de Marracuene, o Incomati presenteia-nos com 260 metros para chegar à margem da Macaneta. Essa travessia é (ainda) feita pelo batelão e é esse o foco principal da minha homenagem neste texto. A minha humilde vênia a um colosso da História!

O batelão tem 68 anos de idade, mas seria incúria minha chamá-lo de “velhinho”. Pode ter alguns problemas de saúde, pode ter limitações provocadas pelo reumático, mas é a solução mais consistente para atravessar o rio e a única que o faz transportando viaturas. Nos dias em que se sente pior, há uns jovens barcos a remos ou com motores improvisados que o substituem e garantem o transporte de pessoas. As viaturas, essas, ficam na margem, sem ter forma de atravessar. Por toda a sua limitação e turbulência vivida a bordo, é remota a ambição dos jovens barcos quererem destronar o papel do batelão. Por tudo isto, sempre que a saúde permita e a ponte não for concluída, o batelão é dono e senhor do rio Incomati, na zona de Marracuene.

À chegada, as piores suspeitas são levantadas. Visivelmente o batelão não se sente bem. As pessoas na margem descrevem que o viram cambalear e com pouca força. Infelizmente não é novidade, mas é sempre de lamentar. Só nos resta a espera, por tempo indeterminado. 


Alivia-nos ver uma equipa médica a tratar-lhe do coração. Ferramentas, marteladas, fiozinho de arame e tudo parece controlado. Cirurgia em curso.


 Mas na verdade ainda foi necessária uma longa hora (sim, porque há horas mais longas que outras) para se ouvir o motor roncar com capacidade de mexer. A Bia estava nostálgica, com a construção da ponte em andamento, reflectia sobre o destino daquele respeitável avô batelão. Eu tentava consolá-la.


Quando houve luz verde para arrancar estávamos convencidos que a viagem iria incluir meia dúzia de pessoas, a fim de testar o esforço do motor e garantir que estava tudo afinado. Puro engano. A equipa a bordo do batelão manda entrar toda a gente, carros e carga…até ao limite! Mas em vez de me convencer que era loucura ou imprudência, preferi pensar que era uma enorme confiança no batelão. Este batelão não precisa de recobro!

O que me relaxou mais foi o facto de ver o cirurgião chefe a olhar para o motor durante a viagem. Não descolou o olhar, como se o coração do paciente estivesse ligado a aparelhos de monitoria. Qualquer engasgue do motor, o cirurgião controlava.

 Cada metro da travessia é assim um desafio, apenas tornado fácil pela persistência do veterano batelão. Quase a chegar à outra margem a sensação é de pura conquista, duma bravura enorme! Afinal o batelão ainda consegue. E o batelão diria: “mas afinal fui feito para quê?”


 Durante a viagem, felizmente identifico a localização dos colete salva vidas. Informação muito útil, pois em caso de naufrágio atiro-me ao mar antes da distribuição dos coletes. Confio mais na minha natação do que…naquilo…


 A atracagem faz-se com uma surpreendente calma, após as piores expectativas do motor não trabalhar, ou não arrancar, ou ir-se baixo durante a travessia…

Todas as dificuldades e soluções médicas só dão valor a cada viagem de 260 metros. “Carpe diem”, deve pensar sozinho o batelão…


 No regresso, ainda no cais, fizemos questão de ouvir de longe o roncar da máquina. Acabado de chegar da outra margem, nada haveria a temer, a não ser um sinal da tripulação para que os carros não embarcassem.

Desta vez o problema não era mecânico. O coração do batelão funcionava na perfeição…se não estivesse inundado de água! 


 Entrou uma outra equipa de enfermeiros, com gerador e bomba de água.


 A drenagem demorou uns 20 minutos. Depois disso ainda foi preciso dar umas marteladas, afinações e regressamos em segurança!


É certo que o batelão é um doente crónico, mas ainda resiste, nalguns dias ainda funciona…

Façam um seguro de saúde ao batelão e que tenha sempre equipas médicas de prontidão por perto.

No dia do seu fim, façam-lhe uma estátua, transformem-no em museu!