22 de agosto de 2017

Barraca


O bairro da Barraca, na ilha da Boa Vista, começou a nascer a partir de 2005. O boom do seu crescimento deveu-se ao fluxo de pessoas que vieram trabalhar nos grandes hotéis da ilha. A ilha não estava preparada para tal enchente de pessoas, de maneira que se foram arrumando como podiam de forma informal a princípio e mais organizada ao fim de algum tempo. Pouca coisa neste bairro é linear de se entender…



Se procurarmos saber sobre o bairro, geralmente há duas vertentes: “o maior problema social de Cabo Verde”, defende a maioria da imprensa; “um bairro com poucas oportunidades”, defendem alguns relatórios e blogs, acendendo a luzinha da esperança. O bairro tem vários nomes, um dos factores que contribui para a confusão. Mas ninguém se preocupa com isso. Tem o nome da divisão administrativa oficial: Chã de Salinas. No bairro este nome não diz nada à grande maioria das pessoas. A dada altura, e numa tentativa de revitalizar o bairro alguém o baptizou de bairro da Boa Esperança. Entende-se bem a intenção, algumas pessoas reconhecem esse nome, mas de facto o nome que colou, o nome unanimemente conhecido é Barraca! Não há volta a dar. Podemos tentar baptizar as coisas, mas há coisas que já vêm com os seus próprios nomes…

O bairro tem uma área equivalente a 7 campos de futebol. Estima-se que vivam cerca de 5 a 7 mil pessoas. O número exacto é difícil de obter, pois os habitantes variam muito devido às épocas de altos e baixos do turismo. Não há sistema de esgotos. Quando não há fossas, há um regime de “água vai” que traz à memória tempos medievais. Não há água canalizada. A água é vendida num chafariz numa das entradas do bairro e carregada em bidons até às casas. A electricidade chega através de serviço privado de grandes geradores, com cobrança própria e abastecimento das 17h à meia-noite.
Não estamos, nem de perto nem de longe, ao nível de Kibera (em Nairobi, onde vivem 2,5 milhões de pessoas), Orangi Town (Paquistão, com 1,8 milhões de pessoas) ou da famosa Rocinha(Brasil, com 70 mil habitantes).


Não quero com isto minimizar nem os problemas nem as soluções da Barraca, mas é sempre importante saber a que escala se fala.


Na hora de incluir a Barraca no Cadastro Predial, as discussões foram muitas. Os argumentos chegaram a altos cargos do governo e, felizmente, houve luz verde para avançar.

Orgulhosamente sempre estive no lado dos que achavam que se deve fazer o cadastro, puxando a corda com convicção. Caso contrário, para que serve afinal o cadastro de terras? Como poderá evoluir de alguma forma a Barraca sem sequer um cadastro, um mínimo reconhecimento de que as pessoas ali estão e ali construíram? De que vale a pena ignorar a realidade, completamente estabelecida no meio da cidade? É dos locais onde me faz mais sentido ser abrangido por um levantamento cadastral.

A preparação envolveu um conhecimento mais pormenorizado do bairro e da sua história. Tipicamente num cenário destes nunca há um só líder. Existem várias vozes e várias versões. Chegamos à conclusão que o anúncio da rádio, que sempre fazemos, para qualquer área de trabalho, tinha que ser feito em 5 línguas diferentes, para abranger a diversidade de pessoas. Incluindo uma que, por ignorância, desconhecia, o Wolof. É falada em 6 países e por mais de 4 milhões de pessoas.

Contra qualquer previsão de dificuldades, o trabalho de recolha de informação correu muito bem. O envolvimento das pessoas foi total. Ninguém hesitava ao demonstrar os limites das suas áreas. Muitas foram as pessoas que nos apresentaram diversos documentos, mesmo que a maioria seja um papel feito numa qualquer mesa dum bar, sem valor jurídico.

A Consulta Pública (momento em que a informação recolhida é publicada para ser validada) foi a de maior afluência da ilha até hoje. Houve até quem se emocionasse em plena sala por ver o seu nome reconhecido. Há poucas coisas mais gratificantes neste trabalho.








O resultado foi um mapa de todas as casas, com a respectiva informação. De um aglomerado de casas mais ou menos desordenadas, chegamos a uma divisão de cada parcela, com limites definidos e o reconhecendo da ocupação. Enorme satisfação em ter obtido o cadastro no bairro. Não resolve tudo, mas é um passo importante.




Os problemas continuam. O esgoto deixa um cheiro desagradável nalgumas zonas. Quando chove pura e simplesmente não há escoamento de água. O bairro fica inundado e cheio de mosquitos. Assim vivem milhares de pessoas que diariamente trabalham para que as condições dos hotéis se mantenham de 5 estrelas. Irónico!

Mesmo assim, muita gente que vive na cidade se encontra por lá com aquela cumplicidade de ”ai também vens cá?”, como se fosse tabu e devêssemos ficar escondidos atrás das críticas ao bairro. Muitas pessoas dirigem-se à Barraca nos momentos de lazer. A mística do bairro, para mim, é esta mesmo. As ruas precárias estão cheias de vida, sempre com pessoas a circular. Mesmo com restrições no abastecimento de electricidade, há sempre música no ar. Em todas as ruas (sem exagero) há sempre uma grelha a assar petiscos cheirosos e apelativos. Quando há falhas de electricidade na cidade, a Barraca tem a sua autonomia e brilha na escuridão da ilha. Mais uma ironia…



Chamem-me sonhador ou lunático, vivo bem com isso, mas a Barraca tem um enorme potencial. Imaginem um local em Cabo Verde onde houvesse música, dança, comida e artesanato de vários países todos os dias?

7 de agosto de 2017

A noite das tartarugas

O tema é quente em Cabo Verde. Há relatos históricos que ligam as tartarugas à demonstração de bravura ou simplesmente a um requinte gastronómico. A incontornável verdade é que neste momento se trata duma espécie ameaçada…


 …e os hábitos têm que se mudar, se queremos dar alguma qualidade à nossa estadia na Terra. Lembram-se que se fumava nos aviões? Lembram-se que não há muito tempo havia o conceito de português de 2ª classe (nascidos nas colónias)? Pois é, se o ser humano quer evoluir, há que ir continuamente melhorando comportamentos!


Aqui fica a minha humilde homenagem às tartarugas e o esforço para dissipar qualquer ideia estupida de voltar a comer tartaruga ou os seus ovos.

Numa noite de luar tive a oportunidade de visitar uma das praias da Boa Vista que, nesta altura, recebem as visitas nocturnas das tartarugas.

Foto: Marco Stiehl

O mistério deste acontecimento é que um animal que passa toda a sua vida no mar, venha à praia na altura da desova. Sozinha, na calma da noite, a fêmea segue fiel os seus instintos, atracando à beira mar e lentamente dirigindo-se à areia seca. 


Se por algum motivo não encontra o local apropriado, aborta a missão e regressa ao mar. A próxima tentativa de desovar pode ser feita nas próximas horas ou dias. Está visto que o trabalho de parto das tartarugas segue o seu próprio ritmo.


Cabo Verde é dos locais mais importantes de desova no lado oriental do Atlântico. A Boa Vista é uma ilha privilegiada, com dezenas de praias e muitas delas com a paz suficiente para receber as tartarugas. A capacidade de reprodução das tartarugas é baixo, por isso, o momento de ver a tartaruga a vir à praia pôr ovos é mágica. Uma dádiva da mãe natureza.


Quando encontram o local apropriado escavam com as patas traseiras alternadamente. Instintivamente sabem a profundidade do buraco, ou simplesmente param quando a pata já não dá mais.






Colocam dezenas de ovos. Quantas crias irão sobreviver?





Depois da tartaruga colocar os ovos o Carlos coloca-lhe uma marca e toma anotações no seu bloco, para monitoria das próximas visitas. 


Regressam ao mar, sem hesitação. 


Obrigado e até breve…