21 de março de 2011

Cenas de trabalho

A missão é simples: fazer cadastro de propriedade, registando os limites dos terrenos e seus proprietários. Munido de imagem de satélite, GPS e muita pro-actividade. Acompanhado por técnicos locais e testemunhas constituídas por membros das comunidades locais.



O caminho para o local de trabalho tem que se fazer com alguma imaginação, inventando estradas no meio do mato. Não há trânsito mas há covas e troncos no meio do percurso que podem perigar as condições do carro. Felizmente há sempre uma voz de alguém no carro que diz: “vira agora”. Mesmo sem razão aparente para o dizer, a voz lá o sabe…e vai safando os obstáculos.



O parque de estacionamento é onde os arvoredos não permitem mais passagem. Não se paga.










Início de caminhadas. Eu sei o que estão a pensar: “este gajo trabalha na praia??”. O cenário é apetecível, sem dúvida, mas tentem caminhar quilómetros, vestidos, com sapatos e meias, debaixo de um sol tórrido e à procura de vértices que limitam os terrenos. Sombras são poucas e não cobrem nem metade do corpo.




Caminhada em lama. Qualquer passo em falso precipita a projecção do corpo direito ao “tapete”. Palavra de ordem: “usar tracção…”








“Agora é por onde?”…ali, que tem menos picos!













Está bem, eu vou, mas deixa-me ir atrás do homem da catana!








Foto de equipa e testemunhas e mais quem apareça! Não é segredo nem presunção minha, mas as testemunhas locais têm uma formação muito baixa. Algumas mal sabem português e acham que sou extra-terrestre com um GPS na mão. Quando vêem as imagens de satélite impressas e reconhecem as suas casas, acham que eu sou mágico: “aquele branco tem a nossa aldeia naquela folha!”, frase que cheguei a ouvir.










Sala de reuniões: explicação das actividades, em várias línguas, Português, Macua (dialecto local) e gestual.










Sala de reuniões: explicação das actividades, em várias línguas, Português, Macua (dialecto local) e gestual.











O canto da parcela que tinha que registar estava…na água! Ligada a tracção, não há porque parar!








Acompanhado por pessoas da comunidade…as testemunhas necessárias para todo o registo das parcelas. Anciãos, de olhos brilhantes e dedos trémulos indicam as parcelas de uma maneira muito própria, como se estivessem a folhear as páginas da História e a visualizar as várias gerações que por ali viram passar. Não abrandam ao Sol escaldante, não desanimam com o terreno difícil…






Só o excesso de água cria alguma complicação. Quando o nível de água é superior ao limite das galochas. Arquimedes já o sabia…a água entra. Se esta imagem tivesse um balão de pensamento, estaria direccionada à cabeça do ancião e diria: “modernices”.






Um adeus efusivo de dezenas de crianças que ficam encatadas por ver um carro…com um branco lá dentro!


2 de março de 2011

Fado


Noutro dia fui convidado por um amigo para ir a um churrasco na praia. Uma palhota na areia, a escassos metros da água, brasa acesa e arcas a manter a cerveja fresca. OK. Apetrechei-me com uma caixa de cervejas, cortei um ananás, temperei-o com um pouco de vinho do Porto e aí fui eu. O motivo do evento, soube-o quando lá cheguei, era festejar o encerramento desportivo de uma equipa amadora aqui de Pemba. Tinham sido campeões. Facto para o qual, remota e indirectamente também contribui: joguei num terreno irregular, com areia e pedras, e com fogosidade de contacto físico além do que consigo dar. Contribuição que terminou, de forma sábia, com a minha subsituação ao fim de 20 minutos. Mas o que fica para a História é que joguei à defesa e durante aquele período não sofremos golos!

No convívio na praia só havia praticamente homens. Eu era o único português e dos poucos brancos. Apresentei-me ao dono do local com as cervejas e o ananás na mão. Ele disse: “as cervejas mete-as na arca. O ananás não é para agora. Guarda!”. Discursos, cantigas, cerveja, exibição da Taça, homenagens, cerveja, planos para o futuro, revisão de jogos ou jogadas e muita cerveja. A comida demorou a ficar pronta e quando veio o espírito já estava alegre e os corpos bamboleantes. Foi caindo a noite e a iluminação era escassa, apenas algumas lanternas e os faróis dos carros. Os decibéis de conversação foram subindo, apesar de haver música vinda de um auto-rádio. Não havia oportunidade de dança, uma vez que os pares seriam constituídos apenas por homens. Mas a música tinha presença. Até fui buscar a minha caixa de CD’s e tomei a liberdade de polvilhar alguns momentos com ritmos animados. Alguns jogadores já se abraçavam. Não sei se apenas por amizade desportiva ou se por necessidade de estabilização. Começou a debandada de pessoas e achei que era altura do ananás. Abri a caixa e em minutos desapareceu. Voou!

De repente comecei a ouvir a música da Mariza vinda do rádio. A confusão continuava a ser muita e a decadência tinha-se instalado. Tropecei num gajo que estava no chão. A dormir, pensei eu. Não. A vomitar, constatei depois. Como o álcool não chega de forma igual a todos, já havia quem discutisse de forma vigorosa. Arrastavam-se os criadores de confusão para o próximo carro que partisse dali para fora. Davam-se sermões de moral aos que ainda mostravam alguma consciência. O presidente da tal equipa perguntou em voz bem alta: “quem pôs este CD?”. A pergunta vinha num tom de quem já tinha feito a pergunta várias vezes e não tinha conseguido romper o ruído em redor para se fazer ouvir. Eu já não conseguia ver o senhor que tinha posto o CD e ele próprio não se acusava. Eu não tinha posto, mas o CD de facto era meu. Naquele contexto não sabia bem o que fazer. Mariza estava muito desenquadrada daquele ambiente, disso não havia dúvida. Poucos seriam os que estavam aptos a apreciar. Timidamente disse: “bem, o CD é meu, mas…” e fiquei na expectativa, como um guarda-redes segundos antes do penalty: para que lado irá a bola? Se eu acertar o lado, soco a bola ou agarro-a? Ele olhou para mim e de imediato perguntou:

- Como é que te chamas?

- André. – disse, seco, sem saber o que aí vinha

- André, o fado toca-me. Fico muito sensibilizado quando o ouço.

Ufa, acertei no lado da bola e encaixei-a mesmo junto ao peito. Se há respostas inesperadas nalguns momentos, esta foi uma delas. Como é que naquele ambiente alguém tinha o sentido da audição apurado e com a alma receptiva a ouvir fado? Fiquei a olhar para ele, com meio sorriso na cara, resultado de satisfação e espanto. Ele disse, com o peito a suspirar: “Isto é lindo. Gravas-me um CD?”. Com certeza, respondi eu. No dia seguinte entreguei um CD de Mariza ao presidente da equipa, claro…