22 de julho de 2011

Odisseia do carimbo


O enredo baseia-se na necessidade de atravessar uma fronteira. Estratégia que se usa em Moçambique para renovar o visto do passaporte e aqui poder permanecer por mais um mês. É simples: atravessar para qualquer país vizinho, carimbar lá, voltar, carimbar cá e está. Simples…o caraças!

As personagens principais, André e Yumi, ponderam as hipóteses que têm, e resolvem ir à fronteira do norte com a Tanzânia, lá depois de Palma. O caminho podia-se fazer de carro e não duraria mais do que 2 dias no máximo. Informam-se sobre como seria a travessia. Deram-lhes muitas indicações, demasiadas…mas poucas os preparariam para a verdadeira odisseia.

As personagens principais saem de Pemba antes das 6h da manhã, rumo a Mocímboa da Praia, percurso que o André costuma fazer em trabalho sem grandes percalços. Em Mocímboa, foram perguntando como estava a estrada para Palma, quantos quilómetros, o estado da estrada, etc…bom método que se deve ter quando se viaja, no geral, em África. As estradas de terra batida não estão sempre da mesma forma e as pontes às vezes teimam em cair! Disseram que a estrada era razoável até Palma. Depois daí disseram…bem, não disseram. Fizeram uma expressão que levantava a sobrancelha, respiravam fundo e diziam apenas: “é má!”. Ok, seja a estrada que for, o mais importante era estarem preparados. Viajam para Palma no tempo previsto e tudo corria bem. Palma é uma vila muito remota lá no norte. As pessoas vão olhando com admiração, facto ao qual a pessoa se vai habituando. Perguntaram a alguém na rua onde era a estrada para a fronteira, mas só falavam dialecto… Fizeram mímica e receberam um gesto que era em frente. No total desconhecimento começaram a estrada que os levaria à fronteira, mas que parecia mais uma picada que acabaria a qualquer momento. Na beira da estrada, dois homens pedem boleia:

- Para onde vão? – pergunta o André

- Border. Tanzanía.

- Excelente, já temos guias…entrem! – suspirou o André ao volante

Estes dois personagens Tanzanianos foram fulcrais, pois se fossem sozinhos, o André e a Yumi duvidariam a cada quilómetro se a estrada iria mesmo para a fronteira.

A estrada é toda de areia, estreita e bastante sinuosa. O mato em redor é denso e deixa pouco espaço para o cruzamento com outro carro. A dada altura a estrada desaparece dentro de água. Neste troço o André sai do carro, fez o controlo do troço para ver se conseguiam passar, ou se seria preciso ir a nado.

Depois cruzam-se com um Land Rover (rei do todo o terreno) que subia em sérias dificuldades um troço…que as 4 personagens desciam. O jipe vinha em primeira, a puxar pelo motor e a rezar aos cavalos que completassem a subida enlameada. O André, calado, só esperava que ele não batesse, de tão perto que passou e que conseguissem descer sem ser cuspidos contra um tronco! Mas tinham a garantia das personagens da boleia que o caminho era por ali…e isso é uma grande ajuda psicológica.

Chegam à fronteira, na localidade de Namoto. Estacionam o carro, mostram bagagem e passaporte aos funcionários da alfândega e tudo bem. Perguntam-lhes se iriam deixar o carro ali. Responderam que sim, e que seguiriam a pé até atravessar essa mítica linha que separa dois países. André e Yumi estavam certos que pouco depois da cancela estaria o rio Rovuma e nele uma embarcação à espera deles. Engano. Com a resposta de irem a pé, a personagem funcionário da fronteira só disse “tá bom”, com uma ausência de expressão que só agora, passada a aventura, é que fica clara! Começaram a andar e de repente foram chamados pela polícia de fronteira, a partir de outra porta, independente das alfândegas. Era por causa do carro. As novas personagens entram em cena devidamente anónimos, sem qualquer nome, sem nenhuma lapela:

- Vai deixar aí o carro? – perguntam

- Sim. – a mesma resposta que André tinha dado há 2 minutos atrás. Funcionou antes, porque não funcionaria agora?

- Pois, mas o estacionamento paga-se.

- Mas os seus colegas disseram-me que estava tudo bem, podia deixar o carro e seguir.

- Eles não sabem!

- Começou a dança – André preparava-se

- Venha aqui dentro.

- Diga-me!?

- Sabe, é que se o carro ficar aí, nós vamos vigiá-lo e tem que deixar aqui as chaves e os documentos.

- Doidos! – pensou André, na esperança de que o seu pensamento não se ouvisse, nem provocasse nenhuma expressão corporal indesejada.

- Mas tem que ser. São normas de segurança.

- Senhor agente, peço desculpa, mas se assim for, pego no carro e volto para trás.- e lixava a missão de atravessar a fronteira, mas disse-o com a convicção de quem o faria mesmo e o polícia contornou.

- Bem, se não quer dar, não dá, mas tem que pagar.

- Quanto?

- Hhmmm… - a personagem polícia anónimo reflecte, atitude de que estava a inventar um preço no momento – são 825 meticais.

825 meticais!, inventa no momento, com originalidade. Não arredondou, para não parecer forçado, mas complicou bastante os trocos!

O preço é bastante alto (cerca de 20 euros). E disse que pagaria o mesmo se ficasse uma noite ou várias. Por isso o preço não estava dependente do número de dias que ali estivesse o carro. Estaria dependente da necessidade do agente naquele dia (ou talvez seja apenas o meu mau feitio).

- Está bem, mas passa recibo? – sabendo de antemão a resposta mais provável, mas acreditando na surpresa.

- Não!

- Mas se é um serviço que fazem, deveriam passar recibo…

- Não vê que estamos muito longe da cidade? O papel aqui não chega.

Pior desculpa é difícil de apanhar. As personagens envolvem-se então numa troca de argumentos sobre o pagamento ou não. A sala dispõe de uma tomada eléctrica, fornecida apenas por painel solar, onde está ligada uma extensão cheia de telemóveis a carregar. Ao serviço dos polícias está uma caneta, alguns papéis e o jornal que continuamente vão folheando, simulando calma e imprimindo stress nas personagens principais. A discussão não parecia ter fim. O André vincava que não queria pagar, a polícia exigia…mas sem recibo, sem tabela de preço. Para dar um reforço aos seus intentos, a polícia chama à cena uma nova personagem, que se encontrava relaxada na sombra de uma mangueira. A personagem entra e é apresentada com cerimónia pelos restantes polícias: chefe de turno, autoridade máxima presente naquele momento. O personagem entra bêbedo em cena, com passos lentos e demasiado pensados. O boné quase não deixa ver os olhos e tem vestimentas absolutamente casuais, sem sinais de fardamento. Para o André ficou claro que aquele não era chefe de coisa alguma e mais não passaria do que uma manobra de distracção. A personagem Yumi esteve sempre presente. Não entende a língua que as personagens usam, mas entende bem a intenção. Fica revoltada.

- Então o que se passa? – pergunta o chefe de turno, encenando para que alguém o levasse a sério, embora a voz ainda lhe saísse pegajosa.

Explicaram.

- Mas você – disse, desautorizado pelo álcool – tem que pagar. Quanto é? – dirigindo-se aos restantes polícias.

André, que nestas situações costuma extravasar, romper a calma e berrar, mantém-se calmo perante tal encenação.

- Ok, senhor André – diz um polícia fardado – se não quer pagar não paga. Leva o carro, atravessa a cancela e guarda o carro mais perto do barco.

- Se calhar é o melhor – testa o André

- Mas depois da cancela não nos responsabilizamos. Há lá pessoas que podem fazer mal ao carro, roubar coisas, etc…não está 100% seguro.

A jogada é óbvia. O discurso resvalava agora para a tentativa de amedrontar os personagens principais. A esta altura o cenário depois da cancela é uma total incógnita. O que se passará depois? Onde haverá lugar para o carro? Qual a distância para o barco? Haverá de facto pessoas a viver na “terra de ninguém”? Eram as perguntas que agitavam silenciosamente o André, na eminência da decisão. A descrição do polícia agita pensamentos de personagens da idade média, com um olho, três pernas e bocas grandes, capazes de devorar o carro numa única refeição familiar! A opção foi pagar, sob protesto, esperando o troco até ao último metical. Tanto fazia, o bom senso não entrou naquela sala, estava fora de cena.

Passaram a cancela da fronteira e ansiavam pelo barco, André, Yumi e os dois Tanzanianos. Andaram mais um pouco e nada. Perguntaram aos companheiros Tanzanianos e eles disseram, em mau Inlgês, que ainda teriam que andar um bom bocado. Um bom bocado?! Assustam-se as personagens principais. De facto, olham o mais longe possível à sua volta e não vêem nenhum sinal de rio!

Pensam que está escondido atrás de alguma árvore e avançam, mais esperançosos do que crentes. E continuam a andar e a andar até começar a ver pequenas aldeias, as tais! Os figurantes que entretanto entram em cena não encaixam bem nos pensamentos medievais que o André teve na fronteira, mas são, sem dúvida, assustadores. Os figurantes estão embebidos em Rhino Gin, bebida que droga, bebida demasiado sintética, barata e muito popular em Moçambique. Está a destruir muitas famílias e cabeças de forma notória. Os figurantes não falam português, mas aproximam-se e falam em dialecto. Fazem perguntas, dizem coisas, dão ordens, tentam abraçar. Yumi pede tradução. André não faz a menor ideia do que foi dito. O certo é que os figurantes falam confiantes, riem-se descontroladamente e andam como zombies. André pensa entretanto como foi bom não ter trazido o carro. Estacionaria onde? Nesta “terra de ninguém” que fica depois do carimbo de Moçambique e antes do carimbo da Tanzânia, vivem famílias em condições de grande isolamento físico e social. Estão entregues a eles próprios, sendo que alguns deles se entregam demasiado ao Rinho Gin! O André não percebe o dialecto, mas sabe que é melhor deixá-los falar enquanto caminham para o barco, agora cada vez mais longe. A caminhada demorou uma hora até todas as personagens, e figurantes que se foram juntando, alcançarem o ponto de saída dos barcos.

Todas as personagens, André, Yumi, Tanzanianos e alguns “Gin zombies” que se conseguiram arrastar estão à beira rio, do rio Rovuma. André e Yumi tentam sentir comichão no abdómen, falta de ar de emoção perante tal monumento geográfico. Mas até agora sentem-se perdidos, revoltados com tudo o que se passou. Ali estão três barcos, com mais aspecto de ferro velho do que embarcações de travessia do Rovuma. O cenário apresenta agora um sol que vai apressado em direcção ao horizonte e que arrasta, depressa demais, a noite, a escuridão quase total. Um dos barcos tinha motor...os outros dois não! Um dos capitães de um dos barcos sorri, apesar da falta de dois dentes da frente. Um sorriso ambicioso de quem vê nos dois brancos que estão à sua frente duas máquinas de Multibanco. O capitão diz o preço, André e Yumi acham um caro, mas não têm força anímica para regatear. Só esperam que seja o barco a motor! E era...e apesar de tudo há um sorriso, o sorriso possível. Afinal estavam a atravessar o gigante rio Rovuma, a atravessar uma fronteira.

Um dos personagens “zombies” conseguiu infiltrar-se no barco e ia alucinado a falar dialecto e a rir para o André e Yumi que, avessos a tanta loucura ao mesmo tempo, tentam ignorar. O enredo tinha dado agora um passo importante: iriam chegar a solo Tanzaniano. Iriam se os rumores que ouviram em Pemba não viessem à tona de água. É que há histórias de outras personagens, outros cenários, em que estes capitães de barco param a meio do rio para pedir mais dinheiro do bilhete, caso contrário voltam para trás! Não aconteceu, e o André respirou de alívio.

Na chegada ao novo país, as personagens André e Yumi pensam que vão chegar a um mundo diferente. Não se pretendem sorrisos rasgados, bandas a tocar, bandejas com sumos de fruta e pequenas iguarias locais para provar. Pretende-se apenas algo mais humano do que a despedida de Moçambique. A Tanzânia é tido como um país com desenvolvimento, a língua Inglesa é bastante disseminada, e um dos seus grandes fortes é o turismo. Mas esqueceram as personagens que estavam a entrar por uma fronteira longínqua, difícil. A chegada parecia uma extensão da partida. Cerca de seis personagens não identificados cercaram os tripulantes do barco. Diziam nomes de localidades, preços em shillings. Tudo falado numa linguagem tecnicamente imperceptível! Inglês mal pronunciado, dialecto que não era entendido pelas personagens principais, que tentam espreitar ao seu redor para perceber onde era a alfândega para carimbar. Era tudo o que elas queriam: carimbar! Mas nunca é assim tão fácil. Stamp?, conseguiram dizer, Go, go...isto complementado com gestos foi fácil de perceber. André e Yumi tinham que apanhar boleia de um carro e pagar algo que não lhes parecesse um roubo.

À chegada da alfândega entra em cena uma personagem completamente desenquadrado: sorriso sincero aberto, fluente em Inglês, esclarecedor e crítico do que se tinha passado até agora, testemunhado pelas personagens principais. Desloca-se do elenco que até então tinha actuado, pela simpatia e porque era ela mesmo que se percorreu tudo até então. Pediu o dinheiro que era de esperar, recolheu delicadamente os passaportes e levou-os para uma sala à parte. As personagens principais estão estupefactas com tamanha recepção. Ainda ponderaram estarem a ser enganados por mais um ilusionista, escaldados com o recente passado. Então colocam os ouvidos bem apurados, não falam, apenas se entreolham na expectativa. E aí está, ouvem: “PUM”, o carimbo a prensar a folha. Missão cumprida, tinham conseguido! Teriam apenas que descansar e voltar no dia seguinte. O, chamemos-lhe, carimbador mágico, até indicou aos exaustos (mais do que meramente cansados) viajantes uma pensão próxima da alfândega. O quarto só não é uma suite, porque não tem casa de banho privativa, porque as tábuas soltas, o lixo, as janelas que não fecham, o colchão que teima em ser curvo e a rede mosquiteira com buracos são apenas pormenores numas instalações que serviram de braços abertos os viajantes a um descanso retemperador.


O cenário da pensão é sem luz da companhia. Tem um gerador pequeno que gane para alimentar luz, som e arca frigorífica. André pede uma cerveja e a senhora tira uma da prateleira. André diz não e ela arruma. André pede cerveja fresca, a senhora não entende inglês! André faz gestos e a senhora tira a mesma cerveja da mesma prateleira. André faz sinal de fresco...ela diz não! A cerveja quente era uma novidade para as personagens principais, mas beberam 2 cada um com um prazer muito próprio de quem estava satisfeito pela aventurosa travessia.


Dia seguinte, personagens descansadas, cenário igual de regresso, mas a preparação já era diferente. Já sabiam o que lhes esperava, já tinham ideia dos preços que podiam pedir e dos valores que podiam exagerar. O regresso ao rio fez-se na caixa de uma pick-up, partilhada com tantos outros figurantes. É cedo, a caixa está cheia, mas as personagens mostram-se animadas pelo “fechar do circuito”.

De manhã deu para apreciarem a beleza do rio Rovuma e a mística de dois países se separarem por um rio. De regresso ao lado Moçambicano as personagens esperam, não um sorriso com sumos e petiscos, mas pelo menos um carro para pedir boleia. Figurantes anónimos dizem que o carro não há-de chegar. Porquê?, ninguém sabe explicar...

As personagens descobrem vendo, mais à frente, quando a lama começa a brotar por entre os dedos dos pés, ou quando as poças de água obrigam a arregaçar as calças.

Quase no fim da caminhada antes de alcançar as alfândegas Moçambicanas, um último cenário: excremento de elefante no caminho. Dizem que é território privilegiado desse gingante herbívoro e as personagens ficam radiantes, até se aperceberem que estão vulneravelmente a pé, com mochila às costas! As personagens ficam então muito mais felizes de ver os excrementos do que o próprio animal...e tiram fotografia...ainda com um sorrindo na cartola…


13 de julho de 2011

Post 175


Este é o primeiro post em que peço expressamente para participarem. Porquê o 175? Porque a soma dos seus algarismos dá 13...o meu número da sorte!

Compreendo que no dia a dia não haja vontade/disponibilidade/à vontade para comentar neste blog...mas sei que muita gente o lê, no silêncio dos vossos ecrãs, nem que seja de tempos a tempos.

Hoje peço que deixem um comentário, nem que seja "eu", e assinem com o primeiro nome ou alcunha que eu conheça...

Não é uma moção de confiança, não é um ataque de egocêntrismo, não é uma birra...é uma curiosidade que estes veículos de comunicação da internet me suscitam: "Quantas pessoas lerão o que escrevo?"

Abraços e beijinhos