25 de janeiro de 2011

Caixa mágica


Na província de Cabo Delgado não se recicla. O lixo é amontoado, queimado e tenta-se esquecê-lo. O “r” mais comum por estas bandas é o da reutilização. Aliás, eu próprio já fui introduzido e contagiado pelo fenómeno. Latas, garrafas, panos, madeiras, plásticos, caixotes…tudo tem uma segunda e terceira utilização. Penso que haveria imenso potencial para reciclar, pois há sempre uma solução para quase todo o lixo e aqui há muito, montanhas dele que tendem a galgar pela saúde das pessoas abaixo. Mas não me compete a mim decidir essas coisas. Compete-me ficar chocado cada vez que deito cascas de fruta/vegetais no lixo normal, pensando que teriam um fim muito mais nobre: composto natural.

Magicando com os meus botões, decidi construir uma caixa de composto, com a preciosa ajuda da Yumi. É fácil, é barato e vale milhões…fazer uma caixa de composto pelas nossas próprias mãos é um espectáculo. A receita é simples:

1º PASSO

Comprar madeira, o esqueleto da ideia. Em Pemba não é bem a madeira que se quer, mas sim a que há. Torta, com alguns bocados mal tratados pela humidade e de dimensões variáveis.

2º PASSO

Planificar o desenho da caixa, optimizando o tamanho das madeiras e as dimensões (médias) das tábuas.

3º PASSO

Medir

4º PASSO

Ficar radiante quando se corta o primeiro bocado de madeira que está mais ou menos direito e que fará parte de um dos membros da obra.

5º PASSO

Continuar a serrar…serrar…serrar…

6º PASSO

Fazer uma pausa para beber uma 2M fresca (na minha opinião a melhor cerveja de Moçambique). Embora o sol já se esteja a pôr, o calor não parece ir com ele.

7º PASSO

Depois de todos os bocados cortados, há que fazer um puzzle para minimizar as frestas entre madeiras, pois nenhum bocado é direito…

8º PASSO

Orgulharmo-nos do primeiro lado da caixa, o primeiro pé, como se um bocado de nós se tratasse.

Chamo a atenção para o pormenor da portinha de baixo onde, daqui a 2 ou 3 meses sairá, brilhante e suculento, o composto natural!

9ºPASSO

Depois dos quatro lados feitos, reservar algum tempo para as despedidas de uma fase da caixa…prestes a ser fechada e receber o nutritivo lixo.


10ºPASSO

Sentir dor na alma quando se prega o primeiro prego e se fecha a caixa.

Sorrir pois a forma final da caixa, apesar de não ser um quadrado perfeito, é um rectângulo com ângulos rectos!

11ºPASSO

Alimentar a caixa com folhas, relva seca, terra, restos de cascas. A caixa parece abanar um pouco, mas deve ser de contente, pois já tinha o estômago vazio desde o primeiro prego.

12ºPASSO

Colocar uma porta superior, com dobradiças, para a digestão ser feita em privacidade.

13ºPASSO

Contemplar o que hoje é lixo e amanhã será adubo. O que hoje acabou e amanhã recomeçará.


14 de janeiro de 2011

Postais do Ibo


A ilha do Ibo faz parte do arquipélago das Quirimbas e está inserida, até ao tutano, no Parque Nacional das Quirimbas. O acesso faz-se com recurso a um complexo esquema de barcos, públicos, emprestados ou alugados. Facto que, a meu ver, só faz dela um local especial. No caminho há basicamente 2 cores, mas longe de o fazer monótono: azul do céu e do mar; verde do mangal. Os diferentes tons de cada cor fazem o resto, oferecem-nos um cenário paradisíaco. Escolhi passar aqui o Natal este ano.


A viagem é daquelas que nos transporta além do físico…leva-nos a outro tempo, uma experiência. À chegada sente-se isso quando nos cruzamos com um dau (embarcação típica desta zona, com todo o conjunto de propulsão eólica bastante artesanal).


A chegada assusta (não sei se estavam à espera deste início, mas é assim mesmo). Casas em ruínas, ruas poeirentas ornamentadas com lixo e postes de electricidade apenas para enfeitar! Por momentos, talvez em reacção ao primeiro impacto, pensei que o capitão do barco se enganou na ilha. Alguém nos diz: “bem-vindos ao Ibo”. Porra, é aqui mesmo…

Parece que acabou a guerra há dez minutos e limparam as ruas à pressa para receber os primeiros turistas. A maioria das casas está em ruínas, a cair e sem telhado. Mas a minoria, que ainda resiste, recebe-nos bem: sorriso e conforto. Não há electricidade pública na ilha. As pessoas têm que gerir geradores ou energias limpas para viver. Estranhamos e depois entranhamos. Viver sem luz pública de todo é um desafio. Já alguma vez pensaram comparar uma pedra de gelo a uma pepita de ouro? Eu já, no Ibo.

Foto: Yumi



Era véspera de Natal e os nossos amigos (Alexandre e Rita, de quem já vou falar) tinham-nos preparado uma recepção de grande classe. O Alexandre estava atarefado em despachar os 10 kilos de caranguejo para a panela e a Rita fazia um arroz doce à “moda da sogra”. A ceia do Natal foi então iniciada com doses massivas de crustáceos, que eu comi, quase sem respirar, como se não houvesse o dia de amanhã, o Natal propriamente dito.

O Alexandre e a Rita são um casal que conheci em Pemba, por intermédio do Gonçalo que conheci em Maputo e estava a viajar. Não tem nada a ver para o que vou dizer a seguir, mas não deixa de ser engraçado. Eles despediram-se dos empregos em Portugal, reuniram as poupanças, arrumaram as trouxas e tentam agora fazer um negócio. Bem se sabe que das cinzas renasce a esperança e nas ruínas do Ibo há-de renascer o sonho deste casal. Boa sorte!

No dia de Natal, passeio de barco.


Foto: Yumi



Foto: Yumi


No dia seguinte, caminhada a pé e mergulho…com peixes grandes, tartaruga e…um tubarão!

Foto: Yumi




Foto: Yumi

No Ibo, conjuga-se, por demasiadas vezes, o passado dos verbos: “ali foi; aqui aconteceu; costumava ser; etc…”. Deixa alguma nostalgia e as mentes mais pessimistas terão dificuldade em ver as ruínas erguerem-se algum dia. No entanto o governo Moçambicano está a lançar várias iniciativas para dar novo fôlego à ilha. A natureza envolvente fala por si, não precisa de apresentações. E há muita gente que acredita e inclui o Ibo na rota dos seus sonhos.

Foto: Yumi


7 de janeiro de 2011

Primeiro tiro


Uma estrada de terra batida, lá para os nortes da província mais ao norte, leva-nos a atravessar aquilo que poderia ser mais uma aldeia Moçambicana. Casas tradicionais com tectos de palha, crianças quase nuas a brincar na rua com o que tiverem à mão, galinhas e cabritos a atravessarem-se de forma insolente no caminho e barraquinhas à beira da estrada a vender bens de primeira necessidade. Mas não é uma aldeia comum, e a placa que nos recebe esclarece-nos de imediato: “Local histórico”. Uns metros depois a nossa atenção é desviada para outra placa: “visite o Museu”. Desviámos a rota e fomos visitá-lo.

O museu de Chai está instalado numa casa de estilo colonial, das poucas na aldeia. Duas pessoas, meio atrapalhadas pela visita mas muito sorridentes receberam-nos. Estavam visivelmente satisfeitos. O museu marca o local onde se deu o primeiro tiro (mesmo, fisicamente) que ditou o inicio da guerra da independência, a 25 de Setembro de 1964.

O museu é humilde, mas bem organizado. Nos placards estão expostas fotografias históricas, da época, mostrando momentos únicos da luta armada. Podem-se ver as listas dos nomes dos guerrilheiros, treinados além fronteiras, enviados em missão para espiar ou atacar. Podemos ler os discursos históricos, incluindo o primeiro que Samora Machel dirigiu à população, onde se pode sentir a convicção nas palavras “independência ou morte”. Os mapas, como não poderiam faltar, mostram que a província de Cabo Delgado foi a locomotiva da revolta.

Este local tem, aliás, como sua bandeira de publicidade, o facto de aqui ter sido dado o primeiro tiro da luta da independência. Um tiro vindo do exterior, para dentro do edifício do museu (outrora residência do administrador colono) para o tentar matar. A tentativa foi em vão para o governante, mas não para a porta onde trespassou a bala. Exposta ainda como buraco e a data do atentado, faz parte de um dos momentos altos da visita.

Noutra sala, as armas. Uma colecção que tenta fazer o percurso temporal do arsenal bélico Moçambicano. Das mais antigas às mais modernas (para a época) de fabrico Chinês. Uma das armas transportou-me para uma agradável viagem aos cantinhos memória. Já conhecia a arma “espera-pouco” dos relatos do meu tio Carlos Alberto, que sabe contar histórias como ninguém. Nunca tinha visto tal espingarda, mas pelo contágio das histórias do meu tio, tive a sensação que até já tinha disparado com ela. Podemos ouvir os acontecimentos várias vezes, mas pela voz do meu tio parece que é sempre uma novidade, entusiasma-me sempre, mais não seja pela envolvência como as conta. E olhem que ele nem sempre conta histórias…é como os melhores vinhos do Porto…só são feitos nalguns anos, e saboreados como se fossem únicos.

De onde vem afinal o nome da espingarda? Bastante óbvio. É uma espingarda de carregar pela boca, onde se colocava pólvora, areia e piripiri (sim, leram bem…piripiri!). Quem nunca experimentou, esfregue as mãos na malagueta e depois coce os olhos. Hão-de ver a vossa capacidade visual e guerreira a diminuir. Depois do tiro havia que carregar de novo os ingredientes e, até novo disparo, espera pouco!

No final deixámos os nomes num livro de visitas e de repente percebemos o entusiasmo com que nos receberam. A última visita foi há mês e meio!! As despedidas foram calorosas, com o nosso guia do museu a dizer: “voltei mais vezes, vocês são os frutos da nação”. Não sei se por simpatia ou distracção. Ali estava eu, português de gema, com todos os ascendentes portugueses até onde não consigo ver mais, num museu de libertação Moçambicana dos portugueses, a ser bem recebido por um Moçambicano…