A estreita ponte que nos encaminha à Ilha deixa antever um lugar com pouco tráfego. Tem, na maior parte da sua extensão, uma única faixa e apenas 4 zonas mais largas onde se podem cruzar os carros. À chegada temos um mapa simples da Ilha, anunciando que é património mundial da UNESCO, desde 1991.
Mas desiludam-se as mentes que vão à espera de algum “lugar monumento”. Antes pelo contrário, a primeira impressão é bastante desoladora. Numa primeira parte as pessoas são visivelmente carenciadas, embora muito afáveis, e tentam vender tudo no meio da estrada.
A segunda parte da ilha deixou-me boquiaberto. À primeira vista parece um cenário digno de far west com ruas poeirentas e edifícios desleixados pelo tempo. Quase que juro ter ouvido os cowboys a beber dentro dos saloons e a qualquer momento esperava um novelo de ramos a cruzar-se comigo, contra o vento.
O mais engraçado é que essa impressão cai logo por terra, quando nos dedicamos a um passeio com olhar mais atento. A vida afinal pulula em todos os sítios, começando com uma demonstração de resistência da flora.
O material com que foram reconstruídos estes edifícios é areia local, com muita riqueza orgânica. Resultado: as árvores alimentam-se…das paredes!, e mesmo depois de fazer uns cortes aos troncos, para impedir o seu desenvolvimento, a árvore mostra como se pode continuar a viver, sorrindo ao sol.
Eu diria que mais de metade da ilha tem os seus edifícios em estado avançado de degradação. Mas seria redutor acabar a ideia por aqui. Os edifícios cansados e com rugas vincadas albergam casas e comércio de forma quase natural, não fosse o risco de queda. À noite também eles descansam, com respiração lenta, numa tentativa de revitalização para enfrentar o dia seguinte.
O espaço destinado ao hospital deixa-nos a dúvida no ar: hospital ou casa fantasma? Mas a entrada sobrevive, ainda imponente, e elucida-nos em relação à pergunta.
Depois há, ao longo da ilha, sinais dos tempos, deixados por diversas culturas:
Coretos ao bom jeito Lisboeta.
Mesquitas em estado de conservação admirável. Telhados árabes com terraços para aproveitarem a água das chuvas.
O mercado, que já esqueceu a idade, humilde mas ainda funcional.
Dois eternos habitantes, outrora vigorosos de carne e osso, agora de ferro e pedra, erguidos numa homenagem justificada.
Vasco da Gama que, ao virar o cabo da tormentas, descansou na ilha e abriu o precedente à sua inclusão em futuras rotas para a Índia. Atrás da sua estátua, o museu da Ilha, edifício reabilitado, mas com um conteúdo que deixa a desejar, partilhando o protagonismo da exposição com o exterior, com a envolvência das ruas.
E finalmente, mas não menos importante, a fortaleza de S. Sebastião, que ali está à beira mar há mais de 450 anos, construída com o intuito de salvaguardar a segurança, face aos diversos ataques. Uma impressionante estrutura, de dimensões, diria eu, desproporcionais, comparativamente com o reduzido tamanho da Ilha.
A ilha revela-se assim um livro de história, aberto à poeira do tempo. Um livro com umas páginas rasgadas, outras soltas. Um livro onde algumas letras já mal se lêem, mas que deixam adivinhar um lugar misterioso, escrito com caligrafia arquitectónica ímpar.
E não seria para menos, a história da ilha, ali ancorada há milhares de anos, é um acumular de influências impressionante, que tento sintetizar de seguida, baseado no panfleto vendido no museu da Ilha.
A ilha, ocupada inicialmente por população africana, tem uma localização geográfica privilegiada, servindo, na altura, os interesses comerciais entre dois continentes: Ásia e África.
A primeira fase de navegação nestes “mares” esteve a cargo do império árabe, desde o séc. VIII ao séc. XV. A influência islâmica estendeu-se desde o arquipélago indonésio, costa africana, mar vermelho e rio Save (um pouco a norte do famoso arquipélago de Bazaruto). Essa influência é ainda hoje sentida, principalmente no norte de Moçambique, com a enorme expressão da religião muçulmana. Ao longo da costa africana surgiu uma nova civilização, os swaihilis, fruto do cruzamento africano e muçulmano.
A segunda fase de navegações começou em 1498, com a chegada de Vasco da Gama, que depois de dobrar o cabo, estabeleceu, com ajuda de pilotos árabes, a ligação entre África e Índia. Iniciou assim, não só uma nova rota comercial no mundo, mas também o inicio de um dos mais notáveis impérios da História: as Descobertas, feitas pelos portugueses. E não exagero! Os livros assim o contam e, nos dias de hoje, ainda fico espantado como foram os meus conterrâneos capazes de tal façanhas. Saídos de um país miserável, com cerca de 1 milhão de habitantes, saídos em “barcaças” vulneráveis, em mar aberto, sem conhecimento da medição da longitude, desbravaram horizontes desconhecidos à mercê de doenças e da morte. Mas este capítulo fica talvez para mais tarde, para fazer a justa homenagem…
Como o século XVI e metade do século XVII foram de domínio Português pelas bandas do Índico, a escolha da Ilha como principal base deu-se em 1507, pela importância geográfica do seu porto. Os navios que se atrasassem na partida de Lisboa perdiam os ventos da monção e tinham que invernar na baía de Moussuril durante longos meses.
A ilha começou a ser cobiçada por árabes, pelo norte, por holandeses, franceses e ingleses pelo sul, dando inicio a batalhas da 2ª fase de colonização. A ilha foi destruída no inicio do século XVII e a sua reconstrução recorreu aos materiais locais: pedra de coral e cal. Na segunda metade do século XVII, o comércio a norte de Cabo Delgado voltou a estar sob controlo árabe. Ao longo do séc. XVII a sucessão de ataques imprimia um ritmo de destruição superior ao que era possível reconstruir. Portugal estava a perder território nas trocas comerciais e, em 1752, o primeiro-ministro marquês de Pombal, decidiu instituir o Governo de Moçambique na Ilha, numa tentativa de recuperar o punho dos acontecimentos. O último barco de escravos saiu da ilha em 1831 e a população negra pôde, em 1840, ocupar finalmente a Ilha, que ganhou uma divisória, ainda hoje visível, com parte portuguesa, na cidade de Pedra e Cal e a parte africana na parte de Macúti.
Portugal dispersou o seu interesse no interior do território moçambicano e, em 1898 a capital do país passou para Lourenço Marques, hoje Maputo. O porto da ilha perdeu fôlego em detrimento do porto de águas profundas de Nacala que foi inaugurado em 1951. A população fugiu da ilha após a independência, mas a ela retomou durante a guerra civil. Quando a paz chegou a Moçambique, em 1992, a ilha era já considerada património mundial da UNESCO há um ano.
9 comentários:
Olá André,
Adorei as fotos e o texto. Jornalismo Leterário puro :)
e fiquei impressonadíssima com aquela árvore a subir pelas paredes, cum caneco...
Bjos
está linda a descrição principalmente para quem conhece a ilha.~
Já foste ao Ibo? Também vale a pena.
Bjocas. Lena
Insultos não deixo... Que artigo lindo! Fazes mesmo uma antevisão para quem nunca lá foi.
O que me espanta é não teres falado da noite nas ruas da Ilha, coisa que muito me impressionou. As ruas viram quarto, os passeios e muros - cama.... ou será que nesta época ainda não? Não estará ainda muito calor? Duvido que seja mesmo só o calor que leva a gente a dormir fora das casas... é também a falta de espaço interior, ok, mas pareceu-me que se tornou hábito, que perdeu uma razão de ser. Isto porque se dorme na rua "com todo o prazer". Valeu primo!
fantástico André,
Para mim que não tive oportunidade de visitar a ilha de Moçambique foi a descrição perfeita: um mix da história mundial (porque os descobrimentos são a nossa assinatura na história mundial !) com as vivências e jeitos da população local. Obrigada pela imagem.
bjs AP
Que bela viagem à Ilha de Moçambique acabei de ter. ;-)
Adorei! mt bom! ;)
grande pinta! Os teus textos estão cada vez melhores... eu continuo a insistir na compilação dos post do TA em livro ;-)
Adorei o mercado e o edifício do "hospital". Bjs
Totalmente de acordo com a admiração pela coragem dos que se atiraram por este mundo fora em casquinhas de noz... e por aí deixaram os sinais que tão bem descreves.
Pena é que depois disso... apenas este triste cinzento de quem nunca teve o privilégio de conhecer os tandos de Moçambique!
As tuas crónicas são uma delícia.
Olá a todos os que conheceram ou conhecem esta linda ilha.
Nasci neste paraíso no ano de 1966, no hospital em que é apresentada a entrada..
Sou filho desta linda Ilha e gostaria de um dia voltar a visitar. Vivi até aos 12 anos numa casa do lado da contra costa junto ao Escondidinho e fiz a escola primária na Escola mais abaixo. Tenho filmes em DVD realizados por amigos em visita recente a ILHA e só tenho pena de ver o estado de degradação em que se encontra. Foi uma pena para mim ver por exemplo o estado em que se encontram as piscinas e o jardim junto ao palácio..No entanto vou guardar para mim aquela imagem de um paraíso onde nasci e onde havia tudo e de tudo.Tenho um postal a minha frente datado de 1967 com um selo de $50 centavos com uma imagem aerea da fortaleza de S.Sebastião, edificio histórico onde todos sabemos que passou Luis de Camões na sua viagem para a India. Se alguem conhecer esta linda ilha e quizer trocar umas impressões comigo deixo o meu mail:
rjrsc@iol.pt
Um abraço
Rui Santos(filho do Sr Santos, que trabalhava no Escondidinho)e afilhado do Sr Renato Couto da 3M.
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