O meu amigo Carlos Alberto é um
exímio contador de histórias, essa herança cultural tão rica que se poderá
perder pelo fast reading das redes
sociais. O contar de histórias vale pelo ritual, tendo o conteúdo moral ou não,
servindo mais para partilhar do que para exibir.
O Carlos Alberto tem uma
positividade admirável, fazendo crer que o pessimismo é para ele uma poeira que
afasta com as mãos, para lhe deixar ver o que realmente anima. Ele não só gosta
de África, como África lhe corre no sangue e isso nota-se na sua emoção, tantos
anos depois de sair de cá…
Da juventude dos seus 83 anos, nos dias
de inspiração conta-nos histórias com tal intensidade que chegamos a ver o
cenário e a sentir empatia pelas personagens. Ouvi histórias dele que
facilmente categorizava como ficção, mas não, embora difíceis de acreditar, são
verdadeiras, ele esteve lá. Até podemos ter ouvido uma história diversas vezes,
mas paramos tudo para a ouvir mais uma vez. Como num flime que já se viu
dezenas de vezes, mas saboreamos a história aguardando com satisfação “aquela
cena” ou “aquele diálogo”…
Ora, um contador de histórias deste
gabarito não pode passar ao lado da Tertúlia Africana e foi-lhe lançado o
desafio de partilhar uma. Ele aceitou, e a Tertúlia ganhou mais um brilho.
Entusiasmou-se a escrever 20 páginas manuscritas (dum possível livro seu à
espera de sair) e que depois de “bater à máquina” aqui partilho. Uma história
que nos traz pedaços da História.
Agora o aprendiz faz a vénia ao mestre
e transcrevo o texto [Silêncio, que se vai contar uma história]:
“Queridos
Amigos – vivem felizes e com gosto? (diria o meu Pai sempre que encontrava
alguém que já não via há muito tempo…).Pergunto eu agora, depois do nosso André
Pinheiro, na sua “Tertúlia”, me ter desafiado a recordar alguma historieta dos
meus tempos de vida em Moçambique. Tempos estes que transcorreram de Fev/Mar
1937 até Mar 2016, último período em que por aí andei convivendo com esse bom
Povo Moçambicano, ainda a Sacha trabalhava no Hospital Privado do Maputo.
Rebobinando
agora a minha memória e andando para trás ao recordar passagens de vida (a
mordedura da “green mamba” em 1941), personagens ilustres (Samora Machel em
1975, na Beira), pessoas menos ilustres (David Peter, em 1950, no seu
Acampamento do Mutchira), pessoas simples (o filho David Peter Selenge, em
1977, e o filho deste, Salomão, em 2016). Fixo-me em 1973, no fim-de-semana de
Páscoa desse ano (Abril – época seca) e vem-me à memória, com muita Saudade,
uma pequena aventura partilhada com o Manecas (primo direito da Isabel), o
Bongo (o responsável da nossa “machamba” na Beira) e o Jeepão (um Dodge, a
gasolina, do U.S.Army, que veio de El Alamein, no Egito, para a Beira, trazido
por um migrante italiano e comprado, em 1960, por 36 contos pagos “a três”: a
minha Mãe, a minha prima Maria Helena e eu próprio. Gastava 40 litros aos cem,
e a gasolina custava na altura 4/5 escudos o litro. Era o B – 5862.
Nesse
fim-de-semana de Páscoa, desafiei o Manecas e o Bongo para um passeio às
margens do Zambeze e, assim, na Quinta-Feira, véspera de feriado, arrancámos
pela estrada de Inhaminga, que seguia paralela à linha da TZR (Trans Zambezia
Railway – a única empresa privada de caminhos de ferro que conheci) - Levando
mantimentos, ovos cozidos, frango assado, água, cervejas na geleira, duas armas
como era hábito (uma de bala e uma caçadeira para as perdizes e galinhas de mato)
e duas tendas para dormir. O motor do Jeepão, neste passeio, já não era a
gasolina mas sim a gasóleo que custava 2$50 o litro. Tive de substituir o motor
“Dodge” por um motor “Perkins” de manutenção muito mais barata!
Tendo
saído da Beira depois do almoço, fomos pernoitar, já noite dentro, à floresta
de Inhamitanga, famosa pelos seus muitos elefantes. Atenção que, a partir do
Dondo, todas as estradas eram, à época, de apenas dois trilhos, em terra
batida, o que significa que, para cruzar com outra viatura, tínhamos de parar e
sair da faixa de rodagem. O nosso Jeepão, naquelas estradas, não dava mais de
20/30 kms/hora, e foi já perto das 20 horas que escolhemos um local, na
floresta, para acampar e dormir depois de acendermos uma pequena fogueira para
afugentar aranhas, aranhiços, cobras, serpentes, bichos, bichezas e…maus
pensamentos…
Quatro/cinco
da manhã, o raiar da aurora a despertar-nos para um novo dia encetado com um
frugal matabicho de café ou chá, leite condensado, uma fatia de pão já meio
duro e uma ou duas laranjas que as havia, e muitas, por aquelas terras adentro.
Decorrida
uma boa meia hora, saímos da floresta e entrámos na zona pantanosa da bacia do
Zambeze, rumo a Caia, uma pequena povoação, sede de posto administrativo, nas
margens do grande rio…
A
certa altura, deparamos com um braço estreito do mesmo, conhecido por “Zangué”,
não mais de 50/70 metros de largura de água com a jangada de madeira amarrada
na margem oposta. “Marinheiro, marinheiro …”, gritámos e, passado um bocado,
vemos dois ou três homens saírem duma palhota (onde certamente dormiam),
subirem para a jangada e começarem a movê-la, muito lentamente, arrastando os
milhares de pequenos nenúfares que se multiplicam por aqueles baixios e onde se
esconde toda uma imensa e variada biodiversidade, da qual os crocodilos são uma
das suas peças fundamentais…
Passados
15/20 minutos, a jangada está do nosso lado e, com a ajuda de duas tábuas já
muito “manhosas”, o Jeepão entra, muito suavemente em primeira, inclinando-a
para o lado de maior peso. Feitos os cumprimentos, pago o serviço (não há
faturas nem recibos), dado o “saguate” (para mim sempre sagrado!), aí vamos
nós, já com o Sol bem alto e a fazer calor do bom…
Saídos
do pontão, procuramos uma sombra para uma pausa de “sandwiches” o que só nos
aparece 30/40 minutos mais tarde, à beira da estrada. Aí estacionados e olhando
em redor, deparo com um velhote, carapinha branca, com ar de hortelão, agarrado
a uma enxada, e trabalhando a terra à volta duns canteiros bem cuidados que, percebi
logo, eram de alfaces, cenouras, feijão, couves, tomate, milho e pouco mais…
Como
sempre gostei de fazer cumprimentei-o e o nosso diálogo foi mais ou menos este:
- Massôco … Uá shona? (como está? novidades ?). A “machamba”
(terra trabalhada) é de você?
- Não senhor, “machamba” é de Sr.
Administrador…
- E você onde vive? (à volta, em redor, num
raio de 1/2 kms não se divisava qualquer habitação ou povoado) …
- Nosso está preso, vive na cadeia…
- (fiquei banzado com esta resposta…e sem
palavras… Vi que havia ali história para contar)
- Como está preso? Você está sozinho aqui,
até pode ir embora e levar enxada consigo…
- Ihhh patrão…não pode…
- Como não pode?…não tem guarda aqui, não
tem ninguém para guardar você, pode ir embora para sua casa…
- (comecei a espicaçá-lo para aprofundar a
história) …
- Ihhh patrão…nosso não pode fugir…nosso
vem aqui todos dias de manhã tratar horta…
- Mas quem dá semente para semear feijão,
tomate, couves?
- É Sr. Administrador…
- Mas quando Administrador vai embora e
vem outro … como é que faz? … já pode ir embora ?
- Ihhh … não pode patrão …
- Onde está família de você?
- Família de nosso está na Matola…já não
conhece…
- Qual foi “milando” (conflito) que você
arranjou para ficar preso?
- “Milando” de muito tempo…matou gente…tempo
de companhia de moçambique…
- Tempo de Companhia de Moçambique?…não
pode ser…
Comecei a fazer contas, a Companhia de Moçambique,
que era majestática, com poderes de soberania, tinha tribunais privativos,
cunhava moeda própria (libras), tinha polícia própria e tinha um Governador, a
viver na Beira, que representava o Conselho de Administração em Lisboa. O
Salazar acabou com estes poderes majestáticos em 1943 mas a Companhia
continuou, embora exclusivamente, como empresa comercial…
Raciocinando
um pouco mais, constatei que o hortelão, “cocuana” (velhote), ao referir a
Companhia de Moçambique, como contemporânea do seu “milando”, estava a querer
dizer que tinha sido julgado e condenado antes de 1943. Como esta
conversa ocorreu em 1973, a conclusão a tirar era a de que a sua “prisão” já se
arrastava, no mínimo, há 30 anos, o que, à face do Código Penal de então nunca
poderia acontecer pois a pena máxima era de 20 anos de cadeia que, em casos
excepcionais de agravamento, poderia chegar aos 24/25 anos…
Como
explicar então esta situação? Explico-a da seguinte forma:
Na
altura, os processos judiciais não eram digitalizados nem sequer com
depoimentos gravados. As suas folhas eram cozidas à mão, com uma guita muito
forte que enfiava numa agulha de sapateiro e formavam volumes, de 80/100
páginas cada um, estas numeradas e rubricadas pelo escrivão do processo. Os
processos, quando findos, iam para o Arquivo do Tribunal com uma etiqueta
exterior, de cartolina, onde se escrevia “Réu preso a libertar em tal data…” e
ninguém mais pensava neles a não ser o Juiz Inspetor que, de 3 em 3 anos ou de
5 em 5, aparecia a efectuar a respectiva inspecção. Pode perfeitamente ter
acontecido que, numa mudança de instalações do Tribunal dum local para outro, a
etiqueta do processo (quem sabe se apenas presa por um “clip”) possa ter caído
e desaparecido…
Acresce
que, naquela época, os Indígenas condenados a penas maiores, (o Indigenato só
foi extinto em 1961 pelo Ministro Adriano Moreira) tinham de as ir cumprir numa
área administrativa bem longe da área da sua residência. Este hortelão terá
sido enviado para a Zambézia para cumprimento da pena do Tribunal de Lourenço
Marques ou da Matola …
Transferido
para o Posto Administrativo de Caia, este condenado terá arranjado a profissão de
Hortelão da Cadeia ou do próprio Administrador e Família. Lembro-me do velhote
me dizer que não tinha ali qualquer família pois esta ficara toda na área da
Matola, a 1000 kms de distância do Zambeze. Apesar de, por duas ou três vezes,
lhe ter dito que ele podia ir embora, sempre me respondia, plenamente convicto:
“Ihhh patrão … não pode fugir”, o que evidencia bem como ele se sentia
“psicologicamente preso” a uma sentença proferida 30/40 anos antes. Estou
convencido que, só com a Independência de Moçambique, em 1975, o nosso
“cocuana” terá recebido Carta de Alforria das autoridades moçambicanas, e quem
sabe se não terá preferido continuar “preso” por mais uns anos já que a horta,
no Zangué, era o seu único e melhor meio de subsistência…
Quando,
em 1974, compartilhei esta história com alguns dos meus antigos Professores da
Faculdade de Direito de Lisboa que, naquele ano, visitaram Moçambique (Profs.
Isabel Maria Magalhães Colaço e Dias Marques) lembro-me deles comentarem, de
mãos na cabeça, “Como é possível isto acontecer no nosso Ordenamento
Jurídico?!”, “Um indivíduo ficar preso quase a vida inteira!?!?” …
É
que a pena até pode ter sido de apenas 20/25 anos (o que era normal para crimes
de homicídio), tendo sido arrastada para além dos 30 anos por esquecimento do
Tribunal que o condenou, e o Administrador de Circunscrição (assim se chamava)
do Posto de Caia nunca iria soltar este condenado sem um Ofício formal, a
ordenar a sua soltura, do Juiz do Tribunal que o condenou…
Após
muito matutar nesta história de gente humana e face à resignação pessoal que
senti existir no próprio hortelão, concluí que o título com que a encimei, “Prisão
Perpétua ou Reforma de Luxo”, talvez retrate, com fidelidade, o lado negativo e
o lado positivo duma vida simples dum moçambicano que o sistema colonial, então
existente, fez perdurar, por muitos e largos anos, sobre uma comunidade humana
merecedora de outra dignidade …
Maio
de 2019 – Pias (FZZ). ”
8 comentários:
Adoro estas histórias! São imperdíveis!
um espectaculo comevedor cunhadinho Carlitos. Nao se esperava outra coisa de ti.. Queremos mais historias!
Carlos Alberto, obrigada pela partilha e André obrigada pelo desafio lançado ao CA.
que venham mais histórias.
simplesmente brilhante e comovente.
queremos mais estórias!!!
Que história tio, venham mais, essas memórias têm que ficar registadas! (pode não dar uma história tão interessante como esta mas gostava de saber pormenores da mordedura da green mamba...)
Adorei a história. Que venham mais 😀
Adorei!!
A lembrar os serões à volta da lareira na “Vila de Pias”.
Quero mais, tio!!
Muito bom!
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