31 de maio de 2010

Reciclagem tradicional


A bordo dum LandCruiser com história, quase com vida própria, viajei com uns colegas ao interior da província de Cabo Delgado. Algures no caminho paramos, compramos pernas de frango e refrescos. A carne é exposta numa cesta, onde está uma lata cortada a meio com piri-piri…a colocar pelo freguês, à sua vontade. Já na estrada, gargantas e estômago saciados, vejo o condutor a abrir a janela. Coloca a lata do lado de fora e abre a mão. Lança com displicência a lata de Coca-Cola em pleno alcatrão. Eu até podia pensar que ali começava a famosa história que nos deixa ver uma lata de Coca-Cola em todo o lado do mundo, mas não, fiquei chocado. Acabo a minha bebida e guardo-a. Como o carro vai aos tombos, fintando os buracos do caminho, amachuco a lata e entalo-a entre os bancos. Fico satisfeito. Outro viajante abre a janela, encaminha a sua lata e prepara-se para a largar. Olho-o com os olhos arregalados, reprovadores e interrompo-o:

- Não deites aí! – impondo, timidamente, a não poluição

- Tens razão, desse lado do carro é melhor – diz ele, passando-me a lata

- Não é isso. Não deites fora de todo…guarda aí e depois pomos no lixo – já assumindo de vez a reprovação – olha, coloca aqui ao pé da minha…

Antes que ele pudesse fazer alguma coisa, repeti o processo, amachucando-a…

Ele olha para mim com ar de incompreensão:

- Não pode ser assim, André. Nós deitamos fora e a população apanha. Depois aproveitam, dão-lhe outro uso. Assim já estragaste duas latas!! – revertendo de repente a reprovação

Não tenho resposta. Ouço e aprendo os hábitos locais. Sorrio sem dizer nada, mas pensando muito: é este um claro exemplo de choque de mentalidades, de hábitos.

No regresso, acabada outra lata de refresco, reflecti na conversa que tive com um dos meus companheiros de viagem. Guardo, o que acho mais correcto, mas sabendo que ele me vai repreender, ou largo janela fora, entrosando-me nos hábitos locais? - era o meu pensamento. Abri a janela, coloquei a mão de fora…e…hesitei. Lá fora a estrada era de terra batida, levantando uma leve poeira que ornamenta a vegetação mais próxima, porque a mais distante é de um verde vivo. Não há sinal de nenhum elemento artificial, a não ser de quando em quando um poste de electricidade. As bermas têm sempre pessoas a passar, seja a pé, seja de bicicleta. Abri a mão. Ninguém reclamou e até os transeuntes no exterior sorriram. Afinal dei inicio ao processo de reciclagem tradicional!

12 comentários:

Blopez disse...

Bem vindo ao mundo da reciclagem controversa!
:)

Joana disse...

Ah..Ah...Em Roma ser romano, nem sempre é fácil!!

Imagino o esforço para deitar lata pela janela!!!

macaca grava-por-cima disse...

Não sei se era capaz... está demasiado enraizado!

E se for um animal a apanhar a lata? Não se se este tipo de reciclagem me convence...

André disse...

Custou-me e muito...mas tive que me adaptar!!

xico disse...

Na Índia passa-se o mesmo com as garrafas de plástico. O problema é evitar as bulhas dos miúdos porque todos querem a garrafa.... pois é..

Isa disse...

Aqui n teria feito mal amachucares as latinhas. Porque é isso que os catadores de latinha fazem, para as vender depois. Numa noite de copos, no carnaval, pela cidade, n vês uma latinha no chão e não é porque as pessoas n a deixam lá... A princípio tb me custava, mas agora sei q ela n ficará mt tempo. Às vezes dou directamente na mão dos catadores de latinha. eles agradecem... Bjo

beijo de mulata disse...

Lindo! Estamos sempre a aprender!

cris disse...

lol....se é por uma boa causa! :D
Sojieb

Bichocao disse...

A tertulia africana precisa que mostres a cidade de Pemba! Fotos, por favor, grande urso!!!

cs disse...

adorei! somos animais de hábitos.!!

Rodrigo disse...

Interpreto como uma lição ao povo da ciência e da tecnologia. Na verdade, não sei ao certo quanto custa (em energia) reciclar uma lata pelos processos convencionais mas seguramente que a reciclagem que descreves nesta historia, aproxima-se mais do conceito de reutilização. A única diferença está no modo de recolha! Fantástico

Alina Baldé disse...

que engraçado!