12 de abril de 2014

Admiração Estrelar

Não quero com este texto pregar-vos uma seca ou ter a presunção de dar uma aula de História! Quero abordar temas que me têm apaixonado, escrevendo um texto que me deu muito gozo a fazer, e que são motivo de admiração pelos homens que desenharam tão orgulhoso período da história de Portugal e do mundo...


A admiração é pelos homens que, de forma mais ou menos voluntária embarcaram em caravelas e foram, uns a bom porto, outro nem tanto. Mas destes últimos, a História geralmente não se ocupa muito, dedicando alguns parágrafos soltos com números, referidos com “cerca de...”. Afinal, quem saberá quantas viúvas nasceram em Belém?

Estes homens metiam-se em barcos que mais não eram que um puzzle de madeira, rangendo em cada costela e em que só havia dois modos de locomoção: ou a própria força braçal ou o vento! As velas hasteadas foram evoluindo com a tecnologia e a versatilidade de navegação aumentava, mesmo com ventos contrários. Mas sem vento...não havia movimento! Tinham que carregar toda a logística, tripulação e mercadoria, obrigando a uma organização meticulosa da carga para assegurar a estabilidade da embarcação.


A famosa frase “Por mares nunca dantes navegados” faz-me todo o sentido, para além da lenga-lenga aprendida nas escolas, com os Lusíadas na mão. Era na verdade um escarafunchar com a unha uma espécie de raspadinha geográfica, descobrindo o horizonte lentamente. As paisagens já lá estavam, mas nunca tinham sido vistas por gente de fora.


Portugal andou à porrada com os seus vizinhos Espanhóis e muçulmanos até inícios do século do séc XV. Por isso, de forma natural, se viu encurralado geograficamente, quando a produção nacional não dava para sonhar em desenvolvimento. Mais à frente apanhariam o império Otomano, que controlando o mar Mediterrâneo e uma grande fatia continental, não os iriam deixar passar de bom grado. Ainda não havia canal de Suez, então surgiu a oportunidade de abrir velas e explorar o oceano Atlântico. Mas a que custo?


A navegação marítima até meados do séc. XV fazia-se em mares conhecidos, como um embrião para aventuras mais exigentes. Mares fechados como o mar negro, ou limitados como mediterrâneo ou mar do Japão eram os locais preferidos. A navegação ia sendo feita, passo a passo, com costa à vista e depois melhorada, à medida que as variáveis iam sendo melhor dominadas: o norte magnético e os ventos. Para isso serviam os mapas Portolano, com origem em Itália, que significa “livro de direcções”. 

Este tipo de cartas trazia uma grande vantagem: os marinheiros podiam ser analfabetos! Não era preciso ler ou fazer contas para se orientarem com este tipo de mapas. As linhas traçadas indicavam as principais direcções da rosa-dos-ventos, mais precisamente, 32 direcções. Eram em geral mapas apenas com informação costeira de grande detalhe, omitindo as terras do continente. Para a navegação bastava uma simples bússola e para ir de um local para outro, havia que considerar a direcção entre esses dois pontos e a direcção do vento.

Mas as estrelas já eram conhecidas a esta altura. Por conhecidas quero dizer referenciadas e as suas posições definidas. Havia tabelas astronómicas que complementadas com a observação dos astros, davam o posicionamento. Foram avanços feitos por Claudio Ptolemeu, nascido no séc.I e falecido por volta do ano 161 d.c. Escreveu preciosas publicações com informação astronómica e publicou importantes desenhos cartográficos, com rigor de posicionamento notável.

É incalculável o tempo que pode demorar um mapa destes a ser feito, com medições feitas em diferentes locais, à mesma hora, depois compiladas, processadas e só então desenhadas à escala. Maravilha. Mas imaginam isto a ser feito num barco? A baloiçar o tempo todo, mesmo em mares de calmaria, e sem comunicação com o continente durante meses! Sabendo que em noite de tempestade, com água a galgar o convés, as prioridades reajustavam-se, e iam para sobrevivência, saúde do barco e perca da mercadoria. Acredito que por esta ordem. Não precisamos de ir tão longe e de ser dramáticos. Basta pensar nos dias seguidos com um capacete de nuvens, como vendas nos olhos, em que estariam impossibilitados de saber a sua posição no globo. Não ter latitude e longitude conjugadas é como seguir por uma estrada e não fazer ideia da direcção onde foram percorridos tantos quilómetros.

 
A latitude vá que não vá. A medição da latitude, cujo método vinha desde o séc 2 AC,, era feita com base no sol e na estrela polar. Esta última, como é sabido, porque tem uma órbita muito próxima do eixo de rotação da Terra, fazendo com que o resto das estrelas formem um carrocel de figuras a rasgar o céu nocturno. Basicamente a latitude é o ângulo, em relação ao horizonte, em que o astro se encontra e as medições eram feitas com instrumentos como o astrolábio.

Segura-se este instrumento pelo anel superior, para deixar a gravidade actuar sobre o disco e deixar o zero perpendicular à vertical do lugar. O ângulo obtinha-se num jogo de sombras, às vezes com ajuda dum papel, para saber quando o astro estava alinhado no ponteiro.


No hemisfério norte já estavam confortáveis. Os desafios vieram quando, com o avançar da expedição, começaram a se aproximar do hemisfério sul. Aí deixam de ver a estrela polar (devido à curvatura da Terra) e tinham que encontrar outras referências. Aprenderam a navegar com o cruzeiro do sul, uma constelação de referência. É formada por 5 estrelas e embora não aponte directamente ao sul, com uns cálculos e geometria simples o rumo é descoberto.


Ate ao seculo 17 a longitude, como hoje a conhecemos, não existia. Em 1598 vários países anunciavam ofertas de dinheiro a quem descobrisse a solução. O problema na medição da longitude é não ter muletas celestiais. A longitude mede-se pela diferença de tempo entre dois lugares: a referência e o local pretendido. À falta de relógio, isto obriga os navegadores e recolherem referências em terra (momento do posicionamento do sol no zénite do lugar) e medirem as diferenças quando estiverem a navegar. O único senão era ter que navegar sempre com terra à vista, para manter referência. Facto que muitas vezes não era viável, pois pode-se tornar perigoso em momentos de tempestade.


A solução passava muito pela medição do tempo. Então um relógio seria suficiente para trabalhar. Mas desta vez o desafio era ter um aparelho fiável, o que se revelou inalcançável durantes séculos! Um dos métodos muito usado na medição do tempo, cabe agora nas prateleiras de muito de nós, a fazer de bibelot: um relógio de areia. 


Este tipo de navegação implicava permanente observação e cálculo mas, os turnos nocturnos são sempre os mais longos e a criatividade humana entretém-se, muitas vezes, com artimanhas para passar o tempo mais rápido. Um dos truques era aquecer o relógio da areia, junto ao corpo, para que o vidro dilatasse e a areia escoasse mais rápido. Aldrabice feita, velocidade mal calculada, posição errada. E essa era, contam os livros, uma das muitas formas de morrer. À deriva, sem saberem a sua posição, a tripulação vergava à fome e à loucura, depois de andar aos círculos durante demasiado tempo.


Aliás, o problema da longitude era tal que ainda hoje permanece um mistério das discussões no tratado de Tordesilhas. Nessa altura a península Ibérica dividia o mundo, ficando cada um com uma metade, imagine-se... À mesa da corte, com auxílio de mapas e cartógrafos desenhou-se uma linha, um meridiano que separasse a supremacia de Portugal e Espanha. Sabe-se que houve uma insistência, da parte de Portugal, para colocar o meridiano uns graus mais para oeste. Espanha cedeu, sem saber que uma ponta do Brasil tinha acabado de ser anexada ao lado Luso. Do Brasil, diz-se, que foi descoberto por deriva das embarcações, ao acaso. Outros dizem que não. Afinal porque teria Portugal insistido, na ronda de negociações do tratado de Tordesilhas, em afastar o meridiano de divisão mais para oeste? 

Quando as doenças venciam o homem, tinham que se livrar do cadáver, sob pena de contaminar o resto da tripulação. Era feito um “homem ao mar”, com a dignidade possível, ou esquecidos desta. As mãos que lançavam hoje um cadáver podiam ser as próximas a serem embrulhadas e atiradas ao mar. Era esse o valor da vida a bordo das caravelas...


À chegada ao cabo das tormentas, os navegantes deparavam-se com o Adamastor, esse monstro que agitava os mares e soprava em desfavor. Talvez uma crença temporal, pela dificuldade em transpor. Por que em alturas de aperto, sabemos, recorremos a culpas exteriores. O desconhecimento é fonte do medo. Eu acredito que ele ainda lá está. Posso vê-lo a respirar, mergulhado nos mares da Boa Esperança.


Verdade seja dita, estes navegantes contavam com a ajuda de navegadores locais, como por exemplo os árabes, em pleno oceano Índico. Há homens bravos, mas heróis só nos filmes. Iniciaram-se as transações comerciais, a pressão bélica e a evolução da cartografia, feitos que posicionaram Portugal no topo do mundo.

Apenas quatro anos após a chegada à Índia, é publicado um mapa muito actual da costa africana. Uma ciência sempre presente a bordo das embarcações.


O mapa de Cantino (1502) é uma daquelas histórias em que temos que dar a mão à plamatória: o mercado negro é funcional! Não pelas consequências, mas pela evolução científica. O autor deste mapa é anónimo, sabe-se que foi encomendado pelo duque de Ferrara, e foram pagos cerca de 1000 euros (preço nos dias de hoje).

No ano em que foi desenhado, muito pouco tempo tinha passado depois da última expedição de Vasco da Gama, entre 1497 e 1499. Conclui-se que o espião tinha acesso fresco a informações vindas a bordo dos barcos. Só assim se explica o nível de actualização deste mapa. Os pormenores são muitos, realço apenas alguns:

1.    Primeira representação da China e Indonésia;
2.    Primeira referência do sistema de latitudes (equador e trópicos);
3.    ...e claro: a passagem aberta no cabo da Boa Esperança, fresquinha.

Vê-se neste mapa, pela primeira vez na história, um panorama geral do mundo. O mar interliga-se e os continentes, apesar da diferença de detalhe, estão bem localizados e referenciados entre si. Ainda havia que batalhar para o aperfeiçoamento do mapa da América e Ásia, mas pelo menos a Europa e África tinham um detalhe muito aproximado ao que conhecemos hoje. Ficou com o nome do espião italiano e foi encontrado, anos mais tarde, num talho, a servir de montra para pousar salsichas. Hoje encontra-se na biblioteca Estense, em Modena.
 

Depois foi abrir rota para a Índia. Portugal aproveitou uma paragem do império chinês, que até 1433 dominavam o oceano Índico, bélica e geograficamente. Não quer dizer que não tinham que ir abrindo umas portas do caminho à força. O mar “cheirava a pólvora e fogo”, como dizem alguns relatos. Assim Portugal foi criando uma supremacia a Oriente que lhe dava azo a ser o senhor das transações comerciais, não só a Oriente, mas trazendo também riqueza para Portugal e Ocidente.


A partir do séc. XVII, os portugueses continuaram a dar importantes contributos à cartografia e ciência mundial, mas longe dos palcos de conquista e expansão. Há várias teorias sobre o declínio do império português, que durou 200 anos, mas o que eu acho é que um império à distância, com tantas adversidades para controlar, é difícil de manter. Outras teorias deixo a vocês para explorar...

Hoje, além de ser um capítulo cativante da História, sente-se o legado deixado por estes bravos. Com todas estas explorações a língua portuguesa está no top 10 das línguas mais faladas no mundo, com cerca de 250 milhões de pessoas. O Português é a língua oficial de 10 países, em 4 continentes diferentes. OBRIGADO aos valentes que abriram portas no horizonte e contribuíram para um feliz capítulo da história de Portugal. Onde ficaram os genes destes heróis do mar, nobre povo? E a nação o que vale agora, desacreditada e frágil?


ALGUMAS REFERÊNCIAS:

1. “THE STORY OF MAPS”, Lloyd Brown
2. “PEDRO NUNES E A CARTA DE MERCATOR”, João Casaca
3. “PORTUGAL, O PIONEIRO DA GLOBALIZAÇÃO”, Jorge Rodrigues e Tessaleno Devezas
4. “MAPS AND MAPMAKING”, Rebecca Stefoff

4 comentários:

Kkul disse...

Let s make a book my darling~~

Zinia disse...

Obrigada. Muito bom para subir a minha moral de ser portuguesa. Beijoca

macaca grava-por-cima disse...

tu tens uma admiração estrelar e nós temos uma admiração por ti, que és um amigo com A grande e ainda escreves estas coisas interessantíssimas!! E sim, pensa lá em escrever um livro

JP disse...

Este texto vem mesmo a calhar...
É agora que deveriamos sentir mais orgulho em sermos portugueses e não desanimarmos com as adversidades da "crise". Vamos lá descobrir novos rumos...

Abraço