Não quero com este texto pregar-vos
uma seca ou ter a presunção de dar uma aula de História! Quero abordar temas
que me têm apaixonado, escrevendo um texto que me deu muito gozo a fazer, e que
são motivo de admiração pelos homens que desenharam tão orgulhoso período da
história de Portugal e do mundo...
A admiração é pelos homens que, de
forma mais ou menos voluntária embarcaram em caravelas e foram, uns a bom porto,
outro nem tanto. Mas destes últimos, a História geralmente não se ocupa muito,
dedicando alguns parágrafos soltos com números, referidos com “cerca de...”. Afinal,
quem saberá quantas viúvas nasceram em Belém?
Estes homens metiam-se em barcos que
mais não eram que um puzzle de madeira, rangendo em cada costela e em que só
havia dois modos de locomoção: ou a própria força braçal ou o vento! As velas
hasteadas foram evoluindo com a tecnologia e a versatilidade de navegação
aumentava, mesmo com ventos contrários. Mas sem vento...não havia movimento!
Tinham que carregar toda a logística, tripulação e mercadoria, obrigando a uma
organização meticulosa da carga para assegurar a estabilidade da embarcação.
A famosa frase “Por mares nunca
dantes navegados” faz-me todo o sentido, para além da lenga-lenga aprendida nas
escolas, com os Lusíadas na mão. Era na verdade um escarafunchar com a unha uma
espécie de raspadinha geográfica, descobrindo o horizonte lentamente. As
paisagens já lá estavam, mas nunca tinham sido vistas por gente de fora.
Portugal andou à porrada com os seus
vizinhos Espanhóis e muçulmanos até inícios do século do séc XV. Por isso, de
forma natural, se viu encurralado geograficamente, quando a produção nacional
não dava para sonhar em desenvolvimento. Mais à frente apanhariam o império
Otomano, que controlando o mar Mediterrâneo e uma grande fatia continental, não
os iriam deixar passar de bom grado. Ainda não havia canal de Suez, então
surgiu a oportunidade de abrir velas e explorar o oceano Atlântico. Mas a que
custo?
A navegação marítima até meados do
séc. XV fazia-se em mares conhecidos, como um embrião para aventuras mais
exigentes. Mares fechados como o mar negro, ou limitados como mediterrâneo ou
mar do Japão eram os locais preferidos. A navegação ia sendo feita, passo a
passo, com costa à vista e depois melhorada, à medida que as variáveis iam
sendo melhor dominadas: o norte magnético e os ventos. Para isso serviam os
mapas Portolano, com origem em Itália, que significa “livro de direcções”.
Este tipo de cartas trazia uma
grande vantagem: os marinheiros podiam ser analfabetos! Não era preciso ler ou
fazer contas para se orientarem com este tipo de mapas. As linhas traçadas
indicavam as principais direcções da rosa-dos-ventos, mais precisamente, 32
direcções. Eram em geral mapas apenas com informação costeira de grande
detalhe, omitindo as terras do continente. Para a navegação bastava uma simples
bússola e para ir de um local para outro, havia que considerar a direcção entre
esses dois pontos e a direcção do vento.
Mas as estrelas já eram conhecidas a
esta altura. Por conhecidas quero dizer referenciadas e as suas posições
definidas. Havia tabelas astronómicas que complementadas com a observação dos
astros, davam o posicionamento. Foram avanços feitos por Claudio Ptolemeu,
nascido no séc.I e falecido por volta do ano 161 d.c. Escreveu preciosas
publicações com informação astronómica e publicou importantes desenhos
cartográficos, com rigor de posicionamento notável.
É incalculável o tempo que pode
demorar um mapa destes a ser feito, com medições feitas em diferentes locais, à
mesma hora, depois compiladas, processadas e só então desenhadas à escala.
Maravilha. Mas imaginam isto a ser feito num barco? A baloiçar o tempo todo,
mesmo em mares de calmaria, e sem comunicação com o continente durante meses!
Sabendo que em noite de tempestade, com água a galgar o convés, as prioridades
reajustavam-se, e iam para sobrevivência, saúde do barco e perca da mercadoria.
Acredito que por esta ordem. Não precisamos de ir tão longe e de ser
dramáticos. Basta pensar nos dias seguidos com um capacete de nuvens, como
vendas nos olhos, em que estariam impossibilitados de saber a sua posição no
globo. Não ter latitude e longitude conjugadas é como seguir por uma estrada e
não fazer ideia da direcção onde foram percorridos tantos quilómetros.
A latitude vá que não vá. A medição
da latitude, cujo método vinha desde o séc 2 AC,, era feita com base no sol e
na estrela polar. Esta última, como é sabido, porque tem uma órbita muito
próxima do eixo de rotação da Terra, fazendo com que o resto das estrelas
formem um carrocel de figuras a rasgar o céu nocturno. Basicamente a latitude é
o ângulo, em relação ao horizonte, em que o astro se encontra e as medições
eram feitas com instrumentos como o astrolábio.
Segura-se este instrumento pelo anel
superior, para deixar a gravidade actuar sobre o disco e deixar o zero
perpendicular à vertical do lugar. O ângulo obtinha-se num jogo de sombras, às
vezes com ajuda dum papel, para saber quando o astro estava alinhado no
ponteiro.
No hemisfério norte já estavam
confortáveis. Os desafios vieram quando, com o avançar da expedição, começaram
a se aproximar do hemisfério sul. Aí deixam de ver a estrela polar (devido à
curvatura da Terra) e tinham que encontrar outras referências. Aprenderam a
navegar com o cruzeiro do sul, uma constelação de referência. É formada por 5
estrelas e embora não aponte directamente ao sul, com uns cálculos e geometria
simples o rumo é descoberto.
Ate ao seculo 17 a longitude, como
hoje a conhecemos, não existia. Em 1598 vários países anunciavam ofertas de
dinheiro a quem descobrisse a solução. O problema na medição da longitude é não
ter muletas celestiais. A longitude mede-se pela diferença de tempo entre dois
lugares: a referência e o local pretendido. À falta de relógio, isto obriga os
navegadores e recolherem referências em terra (momento do posicionamento do sol
no zénite do lugar) e medirem as diferenças quando estiverem a navegar. O único
senão era ter que navegar sempre com terra à vista, para manter referência.
Facto que muitas vezes não era viável, pois pode-se tornar perigoso em momentos
de tempestade.
A solução passava muito pela medição
do tempo. Então um relógio seria suficiente para trabalhar. Mas desta vez o
desafio era ter um aparelho fiável, o que se revelou inalcançável durantes
séculos! Um dos métodos muito usado na medição do tempo, cabe agora nas
prateleiras de muito de nós, a fazer de bibelot:
um relógio de areia.
Este tipo de navegação implicava
permanente observação e cálculo mas, os turnos nocturnos são sempre os mais
longos e a criatividade humana entretém-se, muitas vezes, com artimanhas para
passar o tempo mais rápido. Um dos truques era aquecer o relógio da areia,
junto ao corpo, para que o vidro dilatasse e a areia escoasse mais rápido. Aldrabice
feita, velocidade mal calculada, posição errada. E essa era, contam os livros,
uma das muitas formas de morrer. À deriva, sem saberem a sua posição, a
tripulação vergava à fome e à loucura, depois de andar aos círculos durante
demasiado tempo.
Aliás, o problema da longitude era
tal que ainda hoje permanece um mistério das discussões no tratado de Tordesilhas.
Nessa altura a península Ibérica dividia o mundo, ficando cada um com uma
metade, imagine-se... À mesa da corte, com auxílio de mapas e cartógrafos
desenhou-se uma linha, um meridiano que separasse a supremacia de Portugal e
Espanha. Sabe-se que houve uma insistência, da parte de Portugal, para colocar
o meridiano uns graus mais para oeste. Espanha cedeu, sem saber que uma ponta
do Brasil tinha acabado de ser anexada ao lado Luso. Do Brasil, diz-se, que foi
descoberto por deriva das embarcações, ao acaso. Outros dizem que não. Afinal
porque teria Portugal insistido, na ronda de negociações do tratado de
Tordesilhas, em afastar o meridiano de divisão mais para oeste?
Quando as doenças venciam o homem,
tinham que se livrar do cadáver, sob pena de contaminar o resto da tripulação.
Era feito um “homem ao mar”, com a dignidade possível, ou esquecidos desta. As
mãos que lançavam hoje um cadáver podiam ser as próximas a serem embrulhadas e
atiradas ao mar. Era esse o valor da vida a bordo das caravelas...
À chegada ao cabo das tormentas, os
navegantes deparavam-se com o Adamastor, esse monstro que agitava os mares e
soprava em desfavor. Talvez uma crença temporal, pela dificuldade em transpor.
Por que em alturas de aperto, sabemos, recorremos a culpas exteriores. O
desconhecimento é fonte do medo. Eu acredito que ele ainda lá está. Posso vê-lo
a respirar, mergulhado nos mares da Boa Esperança.
Verdade seja dita, estes navegantes
contavam com a ajuda de navegadores locais, como por exemplo os árabes, em
pleno oceano Índico. Há homens bravos, mas heróis só nos filmes. Iniciaram-se
as transações comerciais, a pressão bélica e a evolução da cartografia, feitos
que posicionaram Portugal no topo do mundo.
Apenas quatro anos após a chegada à
Índia, é publicado um mapa muito actual da costa africana. Uma ciência sempre
presente a bordo das embarcações.
O mapa de Cantino (1502) é uma
daquelas histórias em que temos que dar a mão à plamatória: o mercado negro é
funcional! Não pelas consequências, mas pela evolução científica. O autor deste
mapa é anónimo, sabe-se que foi encomendado pelo duque de Ferrara, e foram
pagos cerca de 1000 euros (preço nos dias de hoje).
No ano em que foi desenhado, muito
pouco tempo tinha passado depois da última expedição de Vasco da Gama, entre
1497 e 1499. Conclui-se que o espião tinha acesso fresco a informações vindas a
bordo dos barcos. Só assim se explica o nível de actualização deste mapa. Os
pormenores são muitos, realço apenas alguns:
1.
Primeira representação da China e Indonésia;
2.
Primeira referência do sistema de latitudes (equador e trópicos);
3.
...e claro: a passagem aberta no cabo da Boa Esperança,
fresquinha.
Vê-se neste mapa, pela primeira vez
na história, um panorama geral do mundo. O mar interliga-se e os continentes,
apesar da diferença de detalhe, estão bem localizados e referenciados entre si.
Ainda havia que batalhar para o aperfeiçoamento do mapa da América e Ásia, mas
pelo menos a Europa e África tinham um detalhe muito aproximado ao que
conhecemos hoje. Ficou com o nome do espião italiano e foi encontrado, anos
mais tarde, num talho, a servir de montra para pousar salsichas. Hoje
encontra-se na biblioteca Estense, em Modena.
Depois foi abrir rota para a Índia.
Portugal aproveitou uma paragem do império chinês, que até 1433 dominavam o
oceano Índico, bélica e geograficamente. Não quer dizer que não tinham que ir
abrindo umas portas do caminho à força. O mar “cheirava a pólvora e fogo”, como
dizem alguns relatos. Assim Portugal foi criando uma supremacia a Oriente que
lhe dava azo a ser o senhor das transações comerciais, não só a Oriente, mas
trazendo também riqueza para Portugal e Ocidente.
A partir do séc. XVII, os
portugueses continuaram a dar importantes contributos à cartografia e ciência
mundial, mas longe dos palcos de conquista e expansão. Há várias teorias sobre
o declínio do império português, que durou 200 anos, mas o que eu acho é que um
império à distância, com tantas adversidades para controlar, é difícil de manter.
Outras teorias deixo a vocês para explorar...
Hoje, além de ser um capítulo
cativante da História, sente-se o legado deixado por estes bravos. Com todas
estas explorações a língua portuguesa está no top 10 das línguas mais faladas
no mundo, com cerca de 250 milhões de pessoas. O Português é a língua oficial
de 10 países, em 4 continentes diferentes. OBRIGADO aos valentes que abriram
portas no horizonte e contribuíram para um feliz capítulo da história de
Portugal. Onde ficaram os genes destes heróis do mar, nobre povo? E a nação o
que vale agora, desacreditada e frágil?
ALGUMAS REFERÊNCIAS:
1. “THE STORY OF
MAPS”, Lloyd Brown
2. “PEDRO NUNES E
A CARTA DE MERCATOR”, João Casaca
3. “PORTUGAL, O
PIONEIRO DA GLOBALIZAÇÃO”, Jorge Rodrigues e Tessaleno Devezas
4. “MAPS AND
MAPMAKING”, Rebecca Stefoff
4 comentários:
Let s make a book my darling~~
Obrigada. Muito bom para subir a minha moral de ser portuguesa. Beijoca
tu tens uma admiração estrelar e nós temos uma admiração por ti, que és um amigo com A grande e ainda escreves estas coisas interessantíssimas!! E sim, pensa lá em escrever um livro
Este texto vem mesmo a calhar...
É agora que deveriamos sentir mais orgulho em sermos portugueses e não desanimarmos com as adversidades da "crise". Vamos lá descobrir novos rumos...
Abraço
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