Quem pensar que atravessar um rio
é uma mera deslocação de uma margem para a outra, deve viver muito infeliz! E o
mais grave é que desconhece esse estado de espirito.
Podemos dissertar sobre as
características diferentes de duas margens banhadas pelo mesmo rio. Podemos ter
várias teorias sobre como a navegação enfrenta a adversidade das águas. Mas isso
eu deixo para os entendidos na matéria.
Na zona de Marracuene, o Incomati
presenteia-nos com 260 metros para chegar à margem da Macaneta. Essa travessia
é (ainda) feita pelo batelão e é esse o foco principal da minha homenagem neste
texto. A minha humilde vênia a um colosso da História!
O batelão tem 68 anos de idade,
mas seria incúria minha chamá-lo de “velhinho”. Pode ter alguns problemas de
saúde, pode ter limitações provocadas pelo reumático, mas é a solução mais
consistente para atravessar o rio e a única que o faz transportando viaturas.
Nos dias em que se sente pior, há uns jovens barcos a remos ou com motores
improvisados que o substituem e garantem o transporte de pessoas. As viaturas,
essas, ficam na margem, sem ter forma de atravessar. Por toda a sua limitação e
turbulência vivida a bordo, é remota a ambição dos jovens barcos quererem
destronar o papel do batelão. Por tudo isto, sempre que a saúde permita e a
ponte não for concluída, o batelão é dono e senhor do rio Incomati, na zona de
Marracuene.
À chegada, as piores suspeitas são levantadas. Visivelmente
o batelão não se sente bem. As pessoas na margem descrevem que o viram
cambalear e com pouca força. Infelizmente não é novidade, mas é sempre de
lamentar. Só nos resta a espera, por tempo indeterminado.
Alivia-nos
ver uma equipa médica a tratar-lhe do coração. Ferramentas, marteladas,
fiozinho de arame e tudo parece controlado. Cirurgia em curso.
Mas
na verdade ainda foi necessária uma longa hora (sim, porque há horas mais
longas que outras) para se ouvir o motor roncar com capacidade de mexer. A Bia estava nostálgica, com a construção da ponte em
andamento, reflectia sobre o destino daquele respeitável avô batelão. Eu
tentava consolá-la.
Quando
houve luz verde para arrancar estávamos convencidos que a viagem iria incluir
meia dúzia de pessoas, a fim de testar o esforço do motor e garantir que estava
tudo afinado. Puro engano. A equipa a bordo do batelão manda entrar toda a
gente, carros e carga…até ao limite! Mas em vez de me convencer que era loucura
ou imprudência, preferi pensar que era uma enorme confiança no batelão. Este
batelão não precisa de recobro!
O que
me relaxou mais foi o facto de ver o cirurgião chefe a olhar para o motor
durante a viagem. Não descolou o olhar, como se o coração do paciente estivesse
ligado a aparelhos de monitoria. Qualquer engasgue do motor, o cirurgião
controlava.
Cada
metro da travessia é assim um desafio, apenas tornado fácil pela persistência
do veterano batelão. Quase a chegar à outra margem a sensação é de pura conquista,
duma bravura enorme! Afinal o batelão ainda consegue. E o batelão diria: “mas
afinal fui feito para quê?”
Durante
a viagem, felizmente identifico a localização dos colete salva vidas.
Informação muito útil, pois em caso de naufrágio atiro-me ao mar antes da
distribuição dos coletes. Confio mais na minha natação do que…naquilo…
A
atracagem faz-se com uma surpreendente calma, após as piores expectativas do
motor não trabalhar, ou não arrancar, ou ir-se baixo durante a travessia…
Todas
as dificuldades e soluções médicas só dão valor a cada viagem de 260 metros.
“Carpe diem”, deve pensar sozinho o batelão…
No
regresso, ainda no cais, fizemos questão de ouvir de longe o roncar da máquina.
Acabado de chegar da outra margem, nada haveria a temer, a não ser um sinal da
tripulação para que os carros não embarcassem.
Desta
vez o problema não era mecânico. O coração do batelão funcionava na
perfeição…se não estivesse inundado de água!
Façam
um seguro de saúde ao batelão e que tenha sempre equipas médicas de prontidão
por perto.
No
dia do seu fim, façam-lhe uma estátua, transformem-no em museu!
3 comentários:
Muitos anos de vida ao batelão!!! Depois só resta que alguém consiga um novo batelão com capacidade para fazer jus a esse, mas a mística nunca mais será a mesma.
Boa aventureiros
hope it survives until bridge is done!:)
aH...aH...que delícia.
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