Volto a falar do Gurué. Dista (em linha reta) de 1.300 Km de
Maputo e de 300 Km de Quelimane, a capital da sua província.
O Gurué tem cerca de 200 mil habitantes e a sua maior força
económica é o chá e a agricultura, com um cenário (que partilhei no post
anterior) idílico, com verde, cascatas, calor e chuva, como se poderá ver nos
contos infantis de alguns livros.
E se chamei ao Gurué a pérola, deixe-me inserir a “cereja no
topo da pérola” que é o Cine Gurué.
O edifício é por si histórico, contrastando com tanta ruina na cidade. O
edifício faz-me lembrar os cinemas dos anos 50 que ainda frequentei em Lisboa e
que agora escasseiam. O edifício faz-me parar em plena praça central,
contemplando-o, namorando-o, fotografando-o, trazendo memórias do Cinema Alvalade
(e não da obscenidade que lá colocaram agora) quando saía da minha escola
preparatória.
Para mim, avistar a peça arquitetónica no Gurué já me
chegava. Seria suficiente para divagar no seu passado de como o Gurué se
situava à frente do seu tempo e o cinema suportava a azáfama cultural da época.
Espanto meu quando vejo as portas abertas! “O edifício estará
vivo?”, pergunto-me, boquiaberto…
Suspeito que a placa do lado direito lá esteja há umas
décadas, mas “o interior deve ter sido invadido por um centro comercial reles”,
penso resignado ao desbaste do tempo e aproximo-me.
Os cartazes no exterior, a máquina de pipocas preparada e a
placa pregada no poste revestido a madeira fazem-me tremer as pernas. “Ainda
passam filmes aqui?”, Questiono-me, mas sem querer mesmo acreditar. “Devem
passar filmes numa sala pequena”, afirma o meu lado mais pessimista. Mas curioso com a placa, fico inquieto. Há duas sessões e
uma delas em matiné.
Sempre adorei a
palavra matiné. Era para mim, enquanto criança, o respeito pela minha condição
etária. Havia discotecas em matiné que, se bem me lembro, acabavam sempre com o
slow, para cada um tentar a sua sorte. E havia cinema em matiné, onde as
exigências juvenis eram satisfeitas com filmes adequados. E quando se saía do
cinema/discoteca ainda havia luz do dia.
Sensação que repito hoje em dia,
por vezes, mas passada a madrugada e dando as boas vindas ao novo dia, com o
raiar do sol…
Assim que entro vejo as inconfundíveis portas de madeira com
a janela retangular na parte de cima e começo a entrar em delírio. Faço
rapidamente conversa com o pessoal que está a jogar snooker no átrio e pergunto, incrédulo, “a sala de cinema
funciona?”. “Claro”, respondem-me sem grande surpresa. “UAU!”, digo para dentro
com espasmos de alegria.
Peço para fotografar e, de olhos esbugalhados apercebo-me
que, ali, a história ainda vive. Cadeiras imaculadamente alinhadas com o assento
retrátil nas mesmas dobradiças
em que foram montadas.
Sala de plateia e balcão! Plateia e balcão senhoras e
senhores…não se esqueçam, estamos no Gurué!
O braço da cadeira é de madeira, reto, desconfortável, partilhado
com o vizinho do lado, tal e qual os conheci.
Afina-se a circulação de ar antes da sessão começar mesmo
por baixo do cartaz do “Break of Dawn” (2002) com o nosso estimado Joaquim de
Almeida. As ventoinhas são ligadas uma por uma, ao redor da sala, ao ritmo do
escadote.
Sabendo que existe uma máquina projetora na ícone “sala das
máquinas” apresso-me a pedir permissão para a ir fotografar…pedido que teve
resposta afirmativa.
E mesmo que já não funcione, há-de sobreviver fisicamente a
muitas gerações digitais que a substituem agora na projeção de filmes.
Esta magia toda é gerida pelo Jahanguir Hussen que, com a
paixão necessária, mantém as duas sessões diárias ao fim de semana…e gere o
espaço de discoteca no átrio do cinema. Uma mais-valia cultural.
Num impulso, dirijo-me à bilheteira e compro um bilhete para
a matiné, revivendo momentos da infância, vivendo momentos do presente,
deliciado. “Bilhete para o balcão”, digo com secreta satisfação. “Vinte meticais
(30 cêntimos de euros)”, responde através da ínfima abertura para transacionar
dinheiro e bilhetes.
ATENÇÃO
senhoras e senhores, a entrada no balcão compensa o preço do bilhete, a
curiosidade histórica, a nostalgia cultural, a viagem de estrada, o mistério da
vida e a existência universal! Portas de madeira e cortinas
cinematograficamente dispostas. A partir deste momento entrei em êxtase. Não
fazia a mínima ideia sobre o filme que iria ver nem tão pouco me importava com
isso!
O
filme que vi, na minha opinião, foi fraco. Pistolas, porrada e frases feitas.
Uma merda, diria, mas a audiência trouxe uma visão diferente da opinião
meramente cultural. Audiência que aumentou timidamente ao longo da exibição e,
claramente, ultrapassou os 80% de ocupação.
Este
cinema é um espaço onde a plateia (e balcão) é livre de gritar quando o herói
dá um bom murro, largar um suspiro de aflição se ele está em apuros ou aplaudir
quando se safa duma situação complicada. Vive-se o filme na plateia (e balcão)
com um entusiasmo duma realidade projetada na tela. Eu diria que essa emoção
contribuiu com 70% da projeção. O resto é apenas mais um filme…
À saída misturo-me na multidão, composta por adultos,
crianças e bebés de colo (mesmo que o filme não seja o mais indicado). Devo ser
o único branco entre a multidão e, dado o volume de pessoas, dou comigo a
pensar qual a linha do metro que vou apanhar quando sair. Tenho o burburinho
típico de saída do cinema, as escadas ainda em lusco-fusco, uma musica neutra
ao fundo e essa sensação, mais uma vez, vale o preço do bilhete, a curiosidade
histórica, a nostalgia cultural, a viagem de estrada, o mistério da vida e a
existência universal!
Depois de sair não apanho o metro, claro. Dirijo-me ao
clássico café central do outro lado da rua, ainda na mesma praça, e bebo uma
cerveja, orgulhoso pelo impulso de ter ido ao cinema no Gurué.
O filme em si é de esquecer, nem me lembro do título, mas o
que é inesquecível é a experiência, naquele cenário, numa ida ao Gurué.
Enquanto levo a garrafa à boca, olho para o edifício do Cine Gurué e tenho
agora uma ligação íntima com interior daquele edifício, como um amor que invadiu
o nosso coração e não iremos deixar, independentemente do tempo ou distância
que passará…
5 comentários:
My love fell in love with Cine Gurue...:)
poxa AP este apanhado faz-me recordar cinema scala, sao miguel, infante, manuel rodrigues e olimpia onde neste ultimo vinha a nostalgia da minha ligação ao oriente com os filmes indianos...
também para dizer que já não precisamos de um relatório de delimitação comunitária de GURUE! ja esta feito.
Que giro 😘 gosto muito destas crônicas
parece uma viagem ao cinema paradiso
:-)
Com esta descrição tao real, senti-me ao teu lado a viver cada momento! Uma maravilha as tuas crônicas!
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