Uma
das coisas que adoro no meu trabalho são as saídas frequentes para o campo,
“onde as coisas realmente acontecem”, como costumamos comentar entre colegas.
Saio da secretária, abandono o computador e o local de trabalho passa a ser
debaixo duma árvore, em ruas sujas ou inundadas, num matagal cheio de bichos
suspeitos, ou com paisagens arrebatadoras.
Deixo
a zona de conforto e vou caminhar debaixo de condições climatéricas impiedosas
(que geralmente pendem para o calor abrasador, pois não me lembro de sentir
frio em Moçambique). Passo horas sem comer nada, ou dependendo dos produtos
agrícolas que se possam apanhar no caminho. Depois de terminada a garrafa da
água trazida de casa, instala-se o receio sob qualquer outra água que apareça à
disposição.
Ando
por lugares que são parentes muito afastados das estradas de alcatrão. Numa
distância genética tão vincada que só por favor lhes posso chamar de picadas de
estrada. Muitas vezes não passam de trilhos camuflados pela vegetação que me
ensinaram o novo termo de “caminhos de pé posto”.
Apesar
de haver muita tecnologia e algoritmos envolvidos no que faço, encanta-me
bastante a componente social no contacto com a população, cujo diálogo às vezes
não passa de uma troca de olhares, limitada pelo desconhecimento mútuo da
língua alheia. Experiências difíceis de ter para quem o trabalho se restringe
às cidades, mesmo vivendo em África (já há muita civilização citadina e
ocidentalismo no continente mãe…). E é assim que, exausto e sujo chego ao fim
do dia com a pele agradavelmente electrizada e
uma viva sensação de aprendizagem…
Numa
destas incursões, num caminho que tinha deixado o alcatrão há vários quilómetros,
enquanto recolhíamos informação num terreno, avistei um pássaro no ar. Um
pássaro grande, preto, em voo circular calmo, numa firmeza apenas conferida a
determinadas espécies. Andava certamente a fisgar uma presa ou a exibir-se a
uma fêmea. O animal cativou a minha atenção e perguntei ao senhor que
inquiríamos: “o que é aquilo?”
O
homem interrompeu o que estava a fazer com alguma relutância e observou o céu.
Respondeu prontamente “Aquilo? Aquilo é pássaro”. Aguardei alguns instantes
para perceber o que tinha acabado de acontecer. Suspeitei de algum gozo, mas o
impenetrável rosto do homem não abria qualquer probabilidade de ter sido uma
piadinha (de mau gosto, por sinal). Coloquei a hipótese de ele suspeitar que eu
estava convencido tratar-se duma vaca que tivesse ido dar um passeio pelos céus.
Mas se assim fosse o rosto iria transmitir algum sarcasmo e não era o caso.
Curioso
como às vezes uma resposta, de tão curta que é, nos faz pensar tanto! Estaria
presente um clássico exemplo de duas pessoas que falam a mesma língua mas não
se entendem facilmente devido a qualquer outra barreira?
O
sentido prático é inconciliável com o romantismo, está visto. Percebi que a
resposta foi directa ao que perguntei. Talvez a minha curiosidade tivesse
atropelado o facto óbvio de que, se está a voar, é um pássaro e generalizei a
pergunta mais adequada, que seria “que pássaro é aquele?”. Talvez as minhas
expectativas ansiassem por um diagnóstico “National Geographic” com a
explicação do nome em latim, hábitos alimentares, padrões sociais e algumas
histórias adicionais para conhecer melhor o espécime em causa. Mas a minha
pergunta foi “o que é aquilo?” e a resposta foi simples e assertiva.
Não
há que complicar onde as coisas podem ser simples. “Obrigado e bom dia”,
respondi, sem qualquer outro comentário, de lição aprendida na bagagem…
1 comentário:
simplesmente delicioso... :)
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