Uma estrada de terra batida, lá para os nortes da província mais ao norte, leva-nos a atravessar aquilo que poderia ser mais uma aldeia Moçambicana. Casas tradicionais com tectos de palha, crianças quase nuas a brincar na rua com o que tiverem à mão, galinhas e cabritos a atravessarem-se de forma insolente no caminho e barraquinhas à beira da estrada a vender bens de primeira necessidade. Mas não é uma aldeia comum, e a placa que nos recebe esclarece-nos de imediato: “Local histórico”. Uns metros depois a nossa atenção é desviada para outra placa: “visite o Museu”. Desviámos a rota e fomos visitá-lo.
O museu de Chai está instalado numa casa de estilo colonial, das poucas na aldeia. Duas pessoas, meio atrapalhadas pela visita mas muito sorridentes receberam-nos. Estavam visivelmente satisfeitos. O museu marca o local onde se deu o primeiro tiro (mesmo, fisicamente) que ditou o inicio da guerra da independência, a 25 de Setembro de 1964.
O museu é humilde, mas bem organizado. Nos placards estão expostas fotografias históricas, da época, mostrando momentos únicos da luta armada. Podem-se ver as listas dos nomes dos guerrilheiros, treinados além fronteiras, enviados em missão para espiar ou atacar. Podemos ler os discursos históricos, incluindo o primeiro que Samora Machel dirigiu à população, onde se pode sentir a convicção nas palavras “independência ou morte”. Os mapas, como não poderiam faltar, mostram que a província de Cabo Delgado foi a locomotiva da revolta.
Este local tem, aliás, como sua bandeira de publicidade, o facto de aqui ter sido dado o primeiro tiro da luta da independência. Um tiro vindo do exterior, para dentro do edifício do museu (outrora residência do administrador colono) para o tentar matar. A tentativa foi em vão para o governante, mas não para a porta onde trespassou a bala. Exposta ainda como buraco e a data do atentado, faz parte de um dos momentos altos da visita.
Noutra sala, as armas. Uma colecção que tenta fazer o percurso temporal do arsenal bélico Moçambicano. Das mais antigas às mais modernas (para a época) de fabrico Chinês. Uma das armas transportou-me para uma agradável viagem aos cantinhos memória. Já conhecia a arma “espera-pouco” dos relatos do meu tio Carlos Alberto, que sabe contar histórias como ninguém. Nunca tinha visto tal espingarda, mas pelo contágio das histórias do meu tio, tive a sensação que até já tinha disparado com ela. Podemos ouvir os acontecimentos várias vezes, mas pela voz do meu tio parece que é sempre uma novidade, entusiasma-me sempre, mais não seja pela envolvência como as conta. E olhem que ele nem sempre conta histórias…é como os melhores vinhos do Porto…só são feitos nalguns anos, e saboreados como se fossem únicos.
De onde vem afinal o nome da espingarda? Bastante óbvio. É uma espingarda de carregar pela boca, onde se colocava pólvora, areia e piripiri (sim, leram bem…piripiri!). Quem nunca experimentou, esfregue as mãos na malagueta e depois coce os olhos. Hão-de ver a vossa capacidade visual e guerreira a diminuir. Depois do tiro havia que carregar de novo os ingredientes e, até novo disparo, espera pouco!
No final deixámos os nomes num livro de visitas e de repente percebemos o entusiasmo com que nos receberam. A última visita foi há mês e meio!! As despedidas foram calorosas, com o nosso guia do museu a dizer: “voltei mais vezes, vocês são os frutos da nação”. Não sei se por simpatia ou distracção. Ali estava eu, português de gema, com todos os ascendentes portugueses até onde não consigo ver mais, num museu de libertação Moçambicana dos portugueses, a ser bem recebido por um Moçambicano…
8 comentários:
uma lição, sem dúvida... de história e de humanidade/amizade/humildade
Bellissimo post. Adorei!!! Como com, aparentemente, tão pouco as pessoas que "trabalham" em museus em moçambique são simpáticas. Em Portugal, quando vistamos um museu, como toda a gente bem sabe, o que não falta é luxos a mais para a falta de simpatia dos nossos ultra especialistas instalados.
Fazes uma descrição muito real e humana do museu, que também conheço, e onde a reação do guia foi também a mesma, como tão bem descreves.
Desejamos-te o melhor para 2011 (tentámos ligar-te mas sem sucesso)e esperamos que continues com a Tertúlia que tanto nos agrada.
Lena e André
Esta descrição fez-me lembrar um museu que vimos em Cuba que também tinha uns primeiros tiros... pareceu uma viagem no tempo.
que maravilha.....adorei!!!! hahahahahahahahahahahaha....mes e meio sem visitas!!!! bem....assim nao teem que limpar muito as casa de banho...ou e no mato???? xiiiii!!!
André - gostei muito do teu relato. Foi um verdadeiro encontro com a História ... Gentes que se antagonizavam e cujos Herdeiros, por Respeito à História, são agora capazes de se abraçarem como Amigos ! A Vida prova sempre que as guerras podiam ser evitadas ... Um abração dos CAJU e do VUMBA.
:)
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