A terra é propriedade
do estado e não pode ser comercializada: assim diz o artigo terceiro da lei de
terras em vigor em Moçambique. Apesar disso, as pessoas ocupam naturalmente a
terra. Ocupam mas não têm posse dela, apenas possuem o direito de a usar.
Direito esse que sim, se negoceia, compre e vende. É um conceito usado nalguns
países, com um fundamento teórico de grande de valor: a terra a quem a
trabalha. Quem não faz nada com a terra perderá o direito a ela...
Aqui se baseia o
meu trabalho: quem está onde a fazer o quê? É uma espécie de Big Brother em forma de mapas, mas que
constitui uma base de informação poderosa e necessária a qualquer intenção de
gestão de terras. Os dados recolhidos podem ser usados para muitos fins,
dependendo das vontades políticas. Os trabalhos estão a decorrer no norte de
Moçambique e prevê-se que durem até meados de 2013.
A recolha dos dados
propriamente dita é uma das componentes que ferve neste momento. Porta a porta,
parcela a parcela, entrevista, medição e testemunho. Simples e eficaz. O
público-alvo é muito claro: milhares de pessoas que estão a viver e usar
determinada terra, mas sem qualquer documento que os relacione com o espaço. É
normal que se perguntem “mas então como se saberá quem é o legítimo dono?”.
Sabe-se por duas fontes:
-Testemunhal: instrumento cuja origem se esquece com o tempo
e que ainda hoje serve, sendo
fundamental, em várias situações;
-
Ocupação pacífica do solo: situação abrangida pela lei
e que prevê que se alguém ocupa de forma
pacífica um terreno, por determinado tempo, ganha direito aquele terreno,
passando a ser sua posse (ou o
terreno ou o direito, dependendo do país). Em Portugal chama-se usocapião
e o prazo é de 25 anos. Em Moçambique chama-se de ocupação de boa fé e bastam apenas 10 anos.
O assunto é sensível. Entramos nas casas das
pessoas, às vezes em equipas de 6, perguntamos coisas, medimos os limites e vamos
embora. Qualquer um concorda que não é fácil! Daí a importância de sessões
prévias de esclarecimento. Seja em Português ou na língua local, a mensagem tem
que passar. Conta-se com pessoas influentes da zona que, para além da estrutura
administrativa, inclui os chefes locais. Várias são as iniciativas. Pode começar com cânticos para afastar o frio
inicial e dar vós à população. Depois é como dá: exemplos, menções a lições
estrangeiras, troca de experiências...
Pemba, 24, Agosto, 2011
Pode-se recorrer à expressão teatral,
improvisando um texto, com tradutor ou não. Exemplifica-se o que se vai fazer a
cada porta, para que o(a) proprietário(a) esteja alerta quando a equipa chegar.
No final há ainda um apelo à colaboração de todos para que tudo corra conforme
e seja mais facilitado o processo.
Cuamba, 25, Fevereiro, 2012
Cuamba, 25, Fevereiro, 2012
Mocimboa, 16, Abril, 2011
Mecufi, 1, Fevereiro, 2011
Muitas das pessoas olham com espanto para a antena GPS, ou mais corretamente, GNSS (Global Navigation Satellite System). Mas rapidamente divagam em hipóteses do que aquilo pode ser: máquina fotográfica, polvilhador, arma para os pássaros, enfim, muita imaginação. Demonstra-se (tanto quanto se pode ultrapassar a sua leiguice) e dá-se o tempo que quiserem para observá-lo.
Mas no
que toca a perceber o valor da posse de terra, a experiência ensinou-me, não há
escolaridades, cores, religiões nem idade que se sintam perdidos. O valor da terra
é bem conhecido, e no caso de agricultura, é dela que vivem sem hipóteses de
usar o supermercado para compras de recurso.
Mecufi, 13, Novembro, 2010
Em ambiente
rural é onde fico mais impressionado. Os responsáveis dos terrenos caminham
decisivos, descalços, afastando o mato cerrado. À volta só vejo vegetação,
ficando muito difícil para me orientar, mas para eles não. Param, levantam a
cabeça para alinhar árvores que eles conhecem, apontam para o chão e dizem: é
aqui. Nem por um momento me passa pela cabeça duvidar e nada mais nos resta do
que ficar boquiabertos e medir as coordenadas...
Malema, 16, Maio, 2012
Em ambiente urbano chega-se a discutir 20 cm
de terra, porque o muro tombou ou porque a vedação está torta... Uma vez era
uma senhora que nos ouvia com muita atenção. Não mexia a cabeça em sinal
nenhum, mas estava a colaborar. Quando lhe pedimos para ver os limites, começou
a andar...em direção à rua. Ia-nos olhando pelo canto do olho e andava. Quando
chegou ao meio da rua indicou-nos o limite com o indicador. “Minha senhora, aí
não pode ser, está no meio da rua!”, dissemos. Ela então recuou calmamente, com
a mesma expressão e, junto à casa refez o limite. Medimos e fomos embora.
O GNSS anda pelos
labirintos, incansável, a medir tudo o que lhe pedimos. Seja engolido por capim,
atravessar rios, com vista para o mar. Há também os
locais quase inacessíveis, em áreas urbanas, onde alguém planeou mal o telhado
e nos obriga a uma ginástica diária.
Pemba, 30, Julho, 2011
Malema, 16, Maio, 2012
Quelimane, 24, Março, 2012
O cadastro de terras, valor reconhecido de
gestão de território, não é tão elementar quanto parece. Estima-se que, em todo
o mundo, apenas 25% da terra está formalmente registada. Poucos são os países
com cadastro de terras completo. Na Europa estima-se
que pouco mais de meia dúzia o tenham o cadastro completo e funcional.
Não é que seja obrigatório registar a terra, diga-se,
mas é muito importante. Um ser humano não deixa de o ser se não tiver bilhete
de identidade, mas abrirá mais portas se o tiver. O que já fizemos aqui é
sempre pouco, mas é alguma coisa. O esforço que se faz constrói uma ferramenta
informativa e visual de grande valor em várias frentes de ideias: melhorar a
circulação dos bairros, construção de melhores condições sanitárias, dinamizar
o comércio e dar a conhecer a cultura, artesanato, serviços, assim como apoiar
as transações dos ditos direitos. A área que já
registámos, de aproximadamente 39 Km2 daria para conhecer cada centímetro da
cidade do Porto, ou metade da ilha de Manhattan... Estamos agora com cerca de
76.500 parcelas registadas em 4 províncias. Um feito notável, que parece chamar a atenção dos órgãos de comunicação social.
“CERCA de 17
mil pessoas nas províncias de Nampula, Cabo Delgado, Niassa e Zambézia já
possuem o seu Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT), como resultado
dos serviços oferecidos pelo Projecto de Acesso Seguro à Posse da Terra, no
âmbito do processo de regularização da posse de terra, financiado pelo
MCA-Moçambique e implementado pela DNTF - Direcção Nacional de Terras e
Florestas.” Maputo, Segunda-Feira, 11 de Junho de 2012:: Notícias
Sendo, em princípio, uma mera medição de
terra, muito se envolve com a parte social e com particularidades culturais.
Mal entendidos, mensagens mal passadas ou crenças tradicionais, podem-se
colocar no meio do trabalho.
Num dos locais as pessoas não percebiam o que
era isso da sua própria terra. Estavam todos convencidos que viviam em terrenos
cedidos pelos colonos e, com muito respeito, aguardavam o dia em que a teriam
que devolver. Desmistificada esta ideia em reunião pública, rompeu na sala uma
comovente orquestra de palmas e cânticos.
Noutro local as pessoas entrevistadas não
sabiam o nome dos conjugues, mesmo que casados há anos. Podemos perceber que
nalguns casos raros (e estranhos) isso poderá acontecer nos primeiros meses do
acordo matrimonial, mas às tantas torna-se uma informação impossível de
ignorar! Sendo informação importante tendo em vista a cotitularidade, a
partilha do uso do terreno, as equipas começaram a ficar confusas. O fenómeno
continuava e os inquiridores ouviam por muitas vezes “oh marido, qual é o teu
nome mesmo?”. Averiguado o fenómeno descobriu-se que aquelas pessoas acreditam
que se disserem o nome do conjugue isso trará problemas para o casamento.
Mocimboa, 13, Abril, 2011
Durante a formação às equipas de campo também
os desafios são muitos. Numa dessas formações, falei para uma audiência
aparentemente atenta. Fitavam-me meneando a cabeça em sinal afirmativo. Eu
prosseguia, mas os olhos deles iam arregalando. Ao fim de 40 minutos veio o
golpe. Interromperam-me o discurso com a intenção de falar. “Vão colocar uma
dúvida”, pensei. Hesitantes, disseram: “senhor, não estamos a perceber nada!”.
Podem imaginar a sensação! Mas confesso-vos, aprecio mais uma golpada destas,
fria e frontal, do que gente hipócrita que não interrompe e vão para casa
baralhados e sem aprendizagem. Ali só tinha duas hipóteses: ou estrangulava o
meu ouvinte (vontade que me soprou o pensamento) ou exercia o jogo de cintura e
resolvia o entrave, fosse qual fosse. Depois de 5 minutos de troca de ideias
surgiu a solução, que resolvia um problema linguístico. Uma única expressão em
língua local desbloqueou tudo e abriu a janela ao entendimento. Ainda hoje essa
equipa trabalha connosco e registaram a sua própria aldeia, com mais de 1700
parcelas.
Nampula, 28, Março, 2012
No final de todo este processo cada parcela
recebe um título, que aqui se chama DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da
Terra). Documento que, pela via clássica, poderia levar 2 anos a ser tratado e
poderia custar mais do que muitas bolsas permitem. No âmbito deste projeto o
documento não leva mais do que alguns meses (teoricamente 2 meses) e custa ao
titular uma fotocópia do seu documento de identificação. Na posse deste
documento o direito ao uso da terra é melhor reconhecido pela lei, o titular
pode pedir empréstimo para construção ou poderá vender e quem comprar saber bem
o que compra. Neste momento entregámos cerca de 17 mil títulos e muitos mais
virão...
Mocimboa, 12, Abril, 2011
O grande objetivo é pormos nos carris um LIMS
(Land Information and Management System) que em português se traduziu para SGIT
(Sistema de Gestão de Informação da Terra). Seja qual for o termo esta é uma
ferramenta fundamental para valorizar todo o esforço feito. Armazenará milhares
de parcelas de informação; fornecerá estatísticas com alguns cliques; ajudará a
saber as áreas que estão ocupadas ou livres; e vai permitir facilitar a
impressão de documentos oficiais.
Mocimboa, 20, Julho, 2011
Mecufi, 06, Julho, 2010
Posso-vos dizer que já houve anteriormente uma
iniciativa semelhante. Por razões que ainda desconheço e já nem pergunto, não
funcionou. A minha expectativa é conseguirmos, claro. Sabendo das dificuldades
mas dando o nosso melhor (desculpem a banalidade da frase, mas saíu-me...não me
apetecem rodeios). Quero, no final deste projeto, ver uma máquina de gestão de
terras para a qual contribui e da qual aprendi muito.
Centenas de pessoas estão a ser formadas em
várias frentes (campo, gabinete, componente processual, administração de
terras, etc). Milhares de pessoas foram beneficiadas com um precioso documento
que lhes atribui legal direito de uso da terra. No entanto a cobrança de taxas
sobre o uso e transação da terra é um capítulo adormecido. Seria essencial para
colocar o registo local de terras a rolar de forma autónoma em cada local.
Assim me pergunto muitas manhãs, em frente ao espelho, qual a solução se não
houver sustentabilidade e este tipo de iniciativas ainda depender de
financiamento externo?
13 comentários:
Maaaaraaaavilha, André!!!!!!!!!!!
Como a vida seria mais fácil se as pessoas que são tão vesadas em ciência como você, fossem tão abertas oas sentimentos como demonstra ser.
Só tenho um insulto, Seu malanro, você não tem vergonha de ter levado tanto tempo a começar a partilhar esses pontos de vista?
Tenho um comentário, ou melhor, uma dúvida: LIMS traduz-se sistema de Gestão de Informação da Terra ou Siagetma de Informação e Gestào da Terra? A mim parece-me que and se traduz "e" e não "de"...
De resto, apenas um abraço e uma súplica: continue a escrever...
JC
aí vai
maravilha :)
sem comentarios!
wow, impressive!! i also like the other chapters of your blog!
“senhor, não estamos a perceber nada"
Adorei ler este post e como engenheira geógrafa/topógrafa achei super interessante. Deve ser um desafio e tanto, este trabalho:) Parabéns e continue a dar-nos noticias dele:) Obrigada
Que testemunho fantástico.
bj
jo
acho que este tipo de blog poderia ser criado ao nivel da DNTF, assim as pessoas trambem poderiam comentar sobre as suas satisfaccoes e tambem dissabores...espero que o BL e o JC com apoio do IR possam levar a ideia do AP a um novo patamar.
vamos pra frente AP!
K
Adorei perceber melhor o que fazes por aí!
Excelente trabalho, grande André!
Bjs
Muito bom!! Grande descrição! Parabéns por participares num trabalho tão importante e necessário! Bjs :)
Andrezinho convenceste-me! só agora percebi que afinal também trabalhas ;)
Beijoca grande
Aninhas
Parabéns Andre pelo trabalho que estão a fazer.
Só agora posso perceber a dimensão dele e a importância que tem.
Espero que este processo possa continuar alem dos investimentos estrangeiros.
Um forte abraço.
Sim senhoras... Dá vontade de ir para ai, participar e ser cumplice desse projecto.
Parabéns
Beijinhos
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