13 de março de 2019

Ciência da tradição


O que partilho aqui pode não ser unânime em Moçambique, mas fiz o meu habitual trabalho de casa e vivi de perto algumas histórias, por isso, posso dizer que, mesmo não sendo verdade em todo o país, é-o em parte.

A ideia deste texto começou quando ao ver uma mulher grávida, e perguntando: “então para quando terá o bebé”, a resposta muitas vezes era “há-de nascer”, “um dia desses”, acompanhado de um sorriso que me dizia que a conversa terminaria ali. Fiquei intrigado. Parece a previsão de chuva incerta, apenas baseada em nuvens carregadas que se aproximam.

Foi aí que percebi o óbvio: mesmo que o acontecimento seja global, as heranças culturais vivem-no de forma diversa! Tentei então perceber os meandros locais do acontecimento universal que é o nascimento duma criança.

Nestas danças de interculturalidade a minha palavra de ordem é “entender”, acima de qualquer juízo de valor ou opinião (des)contextualizada. As culturas foram lapidadas pelo tempo e baseiam-se, mais do que em factos reais, em experiências endémicas, inigualáveis.

O meu trabalho de casa foi feito com um pequeno questionário de 3 perguntinhas, amavelmente respondidas por várias mulheres, e editadas por mim:


 1. As mulheres no geral não dizem a data prevista para o nascimento. Porquê?

O sigilo é grande nos primeiros três meses, e há um motivo para isso. Por volta da 12ª semana o feto fixa-se no útero. Antes disso a vulnerabilidade é grande, por isso as mulheres não querem que muita gente saiba, para não criar expectativas ou ter que gerir desilusões e explicações, caso venha a acontecer a perda do feto. Em Moçambique, muitas mulheres não dizem nada nos primeiros 3 meses, pois acreditam que dá azar, têm receio de perder o bebé ou a sua própria vida, porque dizem que algumas feiticeiras aproveitam as mulheres grávidas para fazer maldade. Já se vê aqui a invasão da tradição na ciência, onde algumas pessoas poderão ver a invasão da ciência na tradição.

Quando as mulheres engravidam, na sua maioria devem “amarrar a barriga”. Quer isto dizer que devem consultar uma curandeira ou uma mais velha que lê as pedras. A previsão das pedras é muito importante e, ou o prognóstico é favorável, ou, se não for, incube a gestante com alguma tarefa, que pode passar por visitar a campa dum antepassado, pedindo uma espécie de bênção.

Assim, na prática, vemos a barriga da mulher a aumentar a cada semana, não havendo esclarecimento a nenhuma das nossas perguntas. Um dia a mulher não aparece no trabalho e dizem-nos “foi ter o bebé”, como quem tirou o dia para tratar de algum assunto, precioso, diga-se a verdade: o alívio de quem foi bafejado por tudo ter corrido bem…


2. No geral as mulheres/famílias querem saber o sexo do bebé? 
Ora aí está uma resposta que depende, também ela, do sexo de quem a dá.

No geral, as mulheres querem uma criança saudável acima de tudo, mas saber o sexo do bebé ajuda muito na preparação das cores das roupas e do quarto. Puro sentido prático a querer satisfazer a curiosidade.

No geral, os homens apelam ao ego, querendo um macho, que carregue o apelido por mais uma geração, até fazerem figas que nasça outro macho, e assim sucessivamente. Comentários como “Seria bom ter menino, mas se for menina também está bem.” Emana involuntariamente da ansiedade masculina em desejar um macho.

Na zona rural é mais linear. Macho significa mão-de-obra para a horta. Menina significa ter que tentar mais um a ver se sai rapaz…

  
 3. No caso de as famílias darem o nome à criança (e não os pais) a decisão baseia-se em quê?

Nalgumas famílias o nome tem grande impacto, principalmente se a mãe ou o pai passaram por dificuldades durante a gestação. Por exemplo, “mepo” significa vento em Makonde e o nome pode ser dado porque os pais passaram por muitas dificuldades. Assim inscreve-se nos testemunhos vivos as vivências familiares.

No caso de atribuição de nome a decisão baseia-se na tradição familiar, isto é, nos nomes dos avós paternos, pais, tias ou tios mais velhos. Os “defuntos é que decidem” por via da consulta das pedras se a criança deve ter nome de um antepassado ou se pode ser outro diferente. No passado, as crianças antes mesmo de nascer, já eram chamadas por esse nome tradicional, para que o antepassado a protegesse.

Imagino uma cerimónia em redor duma fogueira, evocando vários espíritos e aguardando pacientemente a decisão superior. Enquanto isso, algumas crianças, depois de nascerem, não têm nome. Assim, o “bebé” e os respectivos pais têm que aguardar…

As famílias ainda continuam a dar o nome tradicional para evitar a perda da criança. Muitas vezes associam doenças ou mal-estar da criança, com o seu nome. Se, após o nascimento, a criança ficar muito doente ou com choros prolongados, os pais/avós procuram o curandeiro de modo a evitar catástrofes. Quando este lhe atribui um nome, deve-se repetir muitas vezes à criança, com o intuito do antepassado ouvir e ficar satisfeito, em jeito de injeção de antibiótico. Muitas vezes, por coincidência ou não, a criança fica bem.

Hoje em dia ainda se preserva este ritual, mas no momento do registo os pais escolhem o nome a seu gosto. Em casa, entre os familiares, por vezes até os vizinhos chamam pelo nome tradicional. Em alguns casos a criança vai para a escola sem saber o nome de registo, só o tradicional. Mais vale jogar pelo seguro…

2 comentários:

Sara disse...

Sempre a aprender contigo....beijinho André,

Isa disse...

tão giro :))